Procura-se escravo fugitivo

quinta-feira, 08 de outubro de 2020

Nas últimas semanas, fazendo uma pesquisa sobre determinado assunto na imprensa régia “Gazeta do Rio de Janeiro”, me chamou a atenção os avisos de escravos fugitivos. O que notadamente me impressionou foram as descrições de mutilações nos corpos desses cativos, uma forma de facilitar a identificação aos interessados na recompensa pela captura. Nas descrições os escravos eram cambados dos pés, desdentados, com grande “costura” nas costas, pernas com marcas de feridas “por estar sempre nos ferros”, nádegas cicatrizadas de relho, marcas de relho nas costas, um dedo cotó, picado de bexigas, boubas nos calcanhares, manetas, aleijados etc.

Recorri então a releitura do livro de Gilberto Freyre, “O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX”. Freyre pesquisou no Jornal do Commercio, no Diário de Pernambuco, entre outras gazetas, inúmeros avisos de escravos fugitivos. Segundo esse autor, normalmente as deformações decorriam dos castigos, excesso e acidente de trabalho, por doença, condições anti-higiênicas e tipo de alimentação.

No tocante aos castigos os instrumentos mais utilizados eram o azorrague, a gargalheira, a pega, o tronco, o vira-mundo, a corda de sedenho, os anjinhos e o colete de couro. Era comum os escravos serem descritos com cicatrizes de açoite e de ferro quente, o dedo picado de agulhas de debruar tamancos, pés deformados cheios de bichos, os dedos dos pés torados por serem amassadores de cal e o cal lhes ter aberto feridas e comido os dedos, com pernas e braços exageramente finos, tortos, cambados, tronchos, zambos ou arqueados, que são sequelas de raquitismo.

Na identificação dos escravos fugitivos, além das deformações decorrentes dos castigos, do tipo de trabalho e do modo de vida havia um tipo de indicação nos anúncios que Freyre denomina de “característicos constitucionais”. O que seria este último? Os senhores descreviam o fugitivo pelo tipo de comportamento, ou seja, introvertidos ou calados, extrovertidos de aspecto alegre, brejeiros, muito político no falar, muito capadócio, bem falante, retórico, muito poeta no falar, contador de histórias, muito pachola, gostava de súcias, gostava de andar pelos batuques, muito dançador, cantador de chulas, tocador de viola para ficar em apenas alguns exemplos.

Em Nova Friburgo, possuímos um anúncio publicado em O Friburguense em 17 de abril de 1881, que ilustra bem o que Freyre denomina de “característicos constitucionais”. O capitão Luciano José Coelho de Magalhães, lavrador de Cantagalo, ofereceu a quantia de um conto de réis a quem capturasse, ou metade a quem desse notícias certas de seu escravo José, pardo, idade entre 28 a 33 anos, marinheiro, cozinheiro, falquejador e serrador. José pertencera a um português que o castigou nas nádegas e nas costas pela “irregularidade de seu proceder” e tinha o hábito de encobrir as cicatrizes dizendo que as feridas das costas eram devidas ao “incômodo”[doença] que dava o nome de “fogo selvagem”.

José era muito falante e cortês, destacava o anúncio. Tinha a voz fina e quando cumprimentava as pessoas dizia sempre a seguinte frase: “Deus lhe dê bons dias” ou “Deus lhe dê boas tardes”. As atividades laborais exercidas pelos escravos é outro fator a destacar. Localizei na Gazeta do Rio de Janeiro escravos no ofício de bolieiro, corrieiro e currador. Freyre nos informa que eram comuns entre os escravos do sexo masculino as profissões de catraeiro, lenhador, talhador de carne, carreiro, sapateiro, pescador, sangrador, cozinheiro, cambiteiro, alfaite, caiador, carpina, marceneiro, pajem, malungo etc.

Já entre as mulheres escravas engomadeira, lavadeira, costureira, doceira, ama-de-leite, marisqueira, enfermeira e mucama. Ainda em relação a Gazeta do Rio de Janeiro me chamou a atenção o caso de João Lopes de Sá, morador na vila de São Pedro de Cantagalo. Conforme esse periódico de 29 de março de 1820, na página 4, consta que “Em fins de dezembro de 1818, [João Lopes de Sá] comprou dez escravos novos, e porque tem aparecido senhores da maior parte [reclamando a propriedade] dos ditos escravos, e só lhe restam três por nomes Maria, João e Joaquim, faz saber a quem forem seus senhores que, dando os sinais certos, se lhe entregarão”. Trata-se de um caso curioso em que se adquire escravos fugitivos de terceiros, o que chamaríamos hoje de receptação culposa.

Possivelmente havia indivíduos especializados na captura de escravos fugitivos para vendê-los, pois não deveriam ser muito atrativas as alvíssaras, ou seja, a recompensa oferecida por seus proprietários. O colono suíço Joseph Hecht nos legou o seguinte depoimento: “... repugnava-nos como algo totalmente inaceitável, o drama dos escravos fugidos e dos recém comprados. Com frequência, víamos passar por nossa cidade de Nova Friburgo negros fugidos que tinham sido capturados pelos caçadores contratados e que estavam sendo devolvidos aos donos. Quem capturasse um negro fugido e o devolvesse, recebia 40 florins, de acordo com a lei.

Para quem se dedicava a essa maldita atividade, essa paga era suficiente. O negro que fugia pela primeira vez era espancado de forma horrível. Se fugisse uma segunda vez, era novamente espancado brutalmente, mas isso não era tudo: uma corrente era presa ao seu corpo, com uma parte pendendo para baixo, por meio da qual as pernas eram presas a uma argola. A corrente lateral era soldada a outra argola. Nessa miserável condição, com o corpo todo apertado, ele tinha de trabalhar e dormir. Quando dois escravos fugiam juntos, eram depois acorrentados juntos a uma argola e assim forçados a trabalhar. Se o escravo fugisse pela terceira vez e fosse preso, era então transportado para o matadouro da cidade do Rio de Janeiro, onde todos os dias recebia 100 chibatadas. Outros eram amarrados a um poste numa praça pública, inteiramente nus e cruelmente surrados.” Através desse depoimento, podemos perceber que Nova Friburgo não ficou à margem da sociedade escravocrata da época.

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    Aviso de fuga de escravo oferecendo recompensa (Fotos: Acervo Biblioteca Nacional)

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    Típica gravura que ilustrava avisos de escravos fugitivos

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    Capitão do mato trazendo escravo com colar de punição, 1835. Johann Moritz Rugendas.

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