A lição de Dorian Gray

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Os dias vão-se embora, sem nos pedir desculpas por tamanha indelicadeza

Infelizmente, não sou dessas pessoas que nunca envelhecem. Pois é o que acontece com certa senhora que conheci tempos atrás, sendo ela então uma trintona e eu um molecote de quinze. Estivemos afastados por mais de uma década e, quando nos reencontramos, eu quase dobrara a idade e ela não passara dos 35, conforme honestamente me confessou, com aquele ar heroico de quem resolve assumir de vez toda a verdade. Outra vem diminuindo os anos com tal velocidade que ela e o filho mais velho já estão quase empatados. Não há o que estranhar nesses fenômenos, pois os cientistas afirmam que espaço e tempo não passam de ilusões criadas pela pequenez da inteligência humana. Tudo é relativo, como diria Einstein.

Portanto, não estará faltando com a verdade quem, tendo 60 anos, sinta-se com 40 e assim os declare. Eu não ouso duvidar de ninguém, mas às vezes sou mal interpretado. Outro dia vi uma aluninha da alfabetização contemplando uma placa fixada na parede do colégio. Perguntei-lhe se ela estava lendo as palavras ali escritas e obtive como resposta um sonoro “rua Monsenhor Miranda”. Talvez achando que eu estivesse cometendo o pecado de duvidar de sua sabedoria, a pequena leitora declarou com ar triunfante: “Eu já leio até de pensamento”. Quer dizer: ela não precisava ficar pronunciando as palavras para que até mesmo um burrão como eu entendesse que ela só podia estar lendo.

No livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, o personagem, à custa de muita safadeza, consegue não envelhecer. Em compensação, mantém escondido um retrato em que vão se acumulando todas as marcas do tempo e das torpezas cometidas pelo seu dono. Não parece boa maneira de permanecer jovem. É só ler o livro para ver que Dorian Gray, que pretendia enganar o tempo, não se deu bem com o truque. Sim, bom seria manter o corpo forte e liso, sem que, no entanto, a alma enrugasse. Mas a lição que o romance nos dá é que isso não é possível. Para não envelhecer, só mesmo morrendo jovem, mas essa solução não agrada a ninguém. Certamente não agradaria àquele ancião que, ao atingir um século de existência, ouviu de um repórter a pergunta sobre como era completar 100 anos. O velho simplesmente respondeu que a outra opção era pior.

Enfim, os dias vão-se embora, sem nos pedir desculpas por tamanha indelicadeza. Tomás Antônio Gonzaga, poeta do Arcadismo brasileiro, dá uma bela cantada na sua idealizada Marília, convidando-a a fazer “de feno um brando leito” e aproveitar “do prazer de sãos amores” porque “sobre nossas cabeças/sem que o possam deter, o tempo escorre;/ e para nós o tempo, que se passa,/ também, Marília, morre”.

É um bom conselho. Talvez melhor ainda seja o que se pode depreender desse pensamento do próprio Wilde: “Ser bom é estar em harmonia consigo mesmo. E não ser é ver-se forçado a estar em harmonia com os outros”. Sim, eis o problema de quem não aceita envelhecer: atormentar-se diante do espelho, vivendo mal consigo mesmo, na vã esperança de parecer bem para os outros.

Para encerrar, outra sentença de Oscar Wilde. Não sei se essa é um bom conselho (no seu tempo ele não era considerado o tipo de quem se podia esperar bons conselhos). Ei-la: “Para recuperarmos a juventude só precisamos repetir as nossas loucuras”.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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