Qual é a sua cachaça?

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 15 de janeiro de 2022

Todo mundo tem uma cachaça preferida. Mesmo os avessos ao álcool, mesmo os que não gostam do destilado. A cachaça é tão nossa que a usamos, inclusive, para falar de nossos bons vícios. 

“Esse jogo é uma cachaça”. “A vista desse lugar é uma cachaça”. “Assistir esse vídeo é uma cachaça”. “Fazer isso é uma cachaça”. “Aquela música é uma cachaça”. “Te ver é uma cachaça”. 

Cachaça é ditado popular. É referência para tudo o que gostamos tanto que até perdemos certo controle sobre a repetição e nos alertamos para não se embriagar, ainda que estar ébrio seja bom vez em quando. Somos feitos de prazeres e os marcantes – momentos, pessoas, lugares, epifanias, símbolos, afazeres – nos resumem. 

Um homem é resumo de suas paixões. O que intitulam os capítulos das nossas biografias, em parte, são nossas cachaças. Qual é a sua? Ou melhor: quais são as suas cachaças? Da branquinha ou da amarela? Pura ou envelhecida? Carvalho, Umburana, Ipê, Pau Brasil, Jequitibá, Cabriúva... 

Assim como tem cachaça para todos os gostos, as cachaças de todos têm que ser respeitadas. Dizem os mais velhos: “Gosto não se discute”. É sábio apreciar a liberdade, mas sabedoria ainda é compreender que temos paladares, tatos, olfatos, histórias e sentimentos diferentes – únicos. 

Quais as cachaças da sua trajetória? Quais seguem com você? Quais se livrou? Quais não abre mão e promete apreciar até o último suspiro, mesmo que não reste gole?

Definimos nossas cachaças para que elas nos definam. 

Diferentemente da matemática, na cachaça e na poesia a ordem dos fatores altera o produto. Assim, é importante saber quem está no controle. Pois ainda que vício, os bons são aqueles que abusamos conscientemente para ter equilíbrio. 

No tal balanço que faz gingar na corda bamba e sorrir mesmo na angústia dos dias difíceis. Na tal sensatez que faz brindar nas horas ruins para abençoar as boas do porvir. Na tal lucidez que nos abre os olhos e o coração para o amor vindouro que acaba de passar na calçada... 

E ainda que se tropece por se confirmar passageira paixão, embriagado experiente se levanta para seguir. Seguimos sempre e as tatuagens de nomes que carregamos abandonados não pesam. Tatuagem não pesa, tanto quanto não se gramatura cicatriz.

Beba das suas cachaças com devoção a si mesmo por estar vivo vívido. Aprecie sem moderação as cachaças que trazem cores ao carrossel e fazem-no girar sem tontear. Aproveite o sabor e até o retrogosto das cachaças que invadem o espírito e dão razão ao existir, insistir, resistir, investir e todos os verbos que o levam a ir para frente, rumo à tal felicidade para além do que pregam coachings, pastores, políticos, psicólogos, o capitalismo, os livros de autoajuda... 

Tenha duas, três ou muitas cachaças para chamar de suas. Compartilhe-as, por que não? Saiba a hora de bebê-las sozinho e todas as demais para dividir com uma pessoa, grupo ou multidão. Afinal, cachaça pede brinde, nem que seja com o santo ou com você mesmo.                         

 

Foto da galeria
(Foto: Deise Silva)
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