O dia em que Deus se ausentou

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 05 de março de 2022
Foto de capa

No céu de estrelas de outubro, exatamente no mesmo teto azul de julho, tudo parou. Tudo, absolutamente tudo. Paralisou, como cena de filme que pausamos para ir ao banheiro ou para pegar um copo de Coca-Cola. 

As borboletas dos campos sem flores; os discursos que disparam balas nas favelas; as ondas dos mares do Pacífico e do Atlântico; os braços abertos para outros abraços; os icebergs que viajam para encontrar seus Titanics; os lápis dos dedos dos analfabetos funcionais e dos que não sabem escrever o que ditou o amor. Tudo simplesmente parou. O que é bom e ruim. O que é aceito e o que não é aceito. Sem virtudes ou pecados. Sem absolvições ou condenações.  

Quando Deus se ausentou, nem houve a pergunta sobre por que Ele se ausentou. Como se ausentou. A paralisia também cessou os lábios, as palavras, os sentimentos que reavivam e os que corroem também.  

Antes, perguntamos tanto onde está Deus. Procuramos nos céus, para além da Via-Láctea, para o centro da Terra. Vasculhamos nos textos antigos e até na física quântica. Uns recorreram ao Velho Testamento para usurpar liberdades. Outros disseram que vale o que veio depois de Cristo, pois Filho de Deus veio para contestar os religiosos de sua época e indagaram se voltaria agora para contestar os fanáticos dos anos dois mil. Fanáticos? Compõem, conscientemente, bancadas que se misturam à bala que mata e ao boi que desmata. Incoerente, não? Na vasta coleção de incongruências, soaria até absurdo continuar a se perguntar: “Onde está Deus?” Sempre causou mais medo quem responde, do que a constatação empírica.

O dia em que Deus se ausentou veio depois de tantos em que não respondemos sequer onde Ele estava…

Foi em uma aula com a brilhante Yoya Wursch que ela me contou essa história. Um programa francês entrevistava um filósofo e em determinado momento, o repórter pergunta: “você acredita em Deus?” E ele responde: “depende do dia”. Não exatamente com essas palavras, explicou que quando há tragédias, quando inocentes morrem, quando guerras começam, nesses dias — cravou ele — eu não acredito em Deus.   

Mas, af    inal — acreditando na existência de Deus — onde Ele estaria nesses dias em que crianças morreram por balas perdidas, em que a fome ceifou tantos em meio à fartura de poucos, em que furacões tomaram cidades inteiras? 

Se tivéssemos olhado para dentro. Dentro de nós e na soma de todos nós. Esquecemos de perceber que Ele está em nós, por nós, entre nós, somos nós na tarefa de desatar os nós.

Escolhemos paralisar, normalizar, naturalizar tudo por preguiça ou por tentativa de isenção de responsabilidade com o todo. Fácil arrumar culpado e por presunção de culpa futura dar todo crédito ao divino para os raros dias em que o tal filósofo acredita na existência de Deus.  

No céu de estrelas de outubro, exatamente no mesmo teto azul de julho, o relógio parou. O fim do mundo não veio no dia que Nostradamus teria previsto. Os polos terrestres não derreteram por completo, tampouco grandes asteroides caíram nas nossas cabeças e dos gados também. Os buracos negros das galáxias não se alimentaram de nossos corpos, nem extraterrestres escravizaram a humanidade. Em algum momento, tudo simplesmente parou. 

Pausa. Para os que pecam e para aqueles que acusam os pseudos-pecadores. Na paralisia, nem vilões ou heróis. Todos plenamente iguais, preservadas intactas as suas essências que unidas constroem o coletivo de individualidades.

Mas a história do tempo fez todos esquecerem. E o tempo para todos parou. E, na paralisia de quem não vê, forçou-se a mudez, o congelamento dos membros, a surdez. Só os corações se mantiveram, ainda que mecânicos. Ninguém morreu. Todos percebem a presença da ausência ao parar... O completo que vem do vazio. Forçados a parar para sentir? Sentir se partir para tomar partido. Deus se ausentou.

No dia seguinte ao sem Deus — quando? — surgirão todos nós. Porque sem nós, não há Deus. 

 

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