Um sopro de Clarice

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 28 de março de 2022

Certa vez, fui ao Rio Grande do Norte à passeio. Durante as viagens de avião, ida e volta, que duraram umas três horas cada uma aproximadamente, li “Um sopro de Vida”, de Clarice Lispector.  Na época, eu estava começando a aprender a escrever, engatinhava, na verdade; mal conseguia ficar de pé. Esse livro me marcou por vários motivos. Primeiro porque foi a última obra que Clarice escreveu, tendo sido publicada após a sua morte. A seguir, porque a autora constrói a personagem Ângela Pralini, e como eu estava aprofundando meus entendimentos a respeito do perfil de personagem, tomei a leitura como um texto quase didático. Por fim, porque admirava a obra de Clarice e, para mim, é fruto de uma autora enigmática, inteligente que entendia como ninguém dos pormenores da vida, como “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”. Ora, só quem elabora um conceito assim entende os meandros que permeiam as tantas “caras” que temos. “Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou um quê? Um quase tudo.”

Mas por que, hoje, estou trazendo Clarice aqui? Ah, se ela estivesse ainda conosco se sensibilizaria com a situação da Ucrânia - a escritora lá nasceu em 1920. Possivelmente estaria orgulhosa com a fibra e a coragem do seu povo, que não se rende, nem se curva.

Uma frase de Clarice me salta aos olhos, que tem a ver com a situação vivida pelo seu país de nascimento: “Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas, nem de grandes ventanias, pois eu também sou o escuro da noite.”

O ucraniano tem na coragem herança genética importante. Em todas as imagens que vi do êxodo daquela população, não observei desespero, nem recusa em sair do lugar onde vivia, tinha raízes e construiu seu destino. Percebi uma atitude brava, resiliente e corajosa. Os que ficaram estão lutando, inclusive os idosos. Os que partiram, provavelmente, irão voltar e reconstruir o país. 

Sou solidária aos refugiados e desejo uma rápida solução diplomática. Porém sinto vontade de conhecer melhor a história do leste europeu desde os seus primórdios. Para tal, vou buscar a literatura histórica, recurso relevante e disponível a todos. Porém um fato é de todo prevalente: a história do mundo foi feita através de lutas cruéis e exterminadoras. As civilizações, infelizmente, ainda não evoluíram o suficiente para resolver suas questões sem o embate sangrento e impiedoso.

Espero que esse violento conflito armado aponte para que os interesses políticos, geográficos e econômicos não fiquem sobrepostos à preservação da vida. 

E ainda sentindo os ventos de Clarice: “Quando puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada”

A Descoberta do Mundo, editora Rocco, 1998

 

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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