Nova Friburgo, um suspiro na realidade

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Seria um final de semana diferente. Dois dias para rever a cidade onde nascera, comemorar o aniversário de setenta anos do amigo de infância e recordar os tempos de juventude quando se perdia pelas ruas de Nova Friburgo. 

O sábado amanheceu querendo chover. Ele saiu com o guarda-chuva nas mãos e chegou na rodoviária Novo Rio com um vento fino, soprando pingos de chuva. Foi o primeiro a entrar no ônibus e sentou-se na janela numa das últimas fileiras. Em pouco tempo, os lugares já estavam ocupados, menos o do lado dele. Foi um alívio pensar que poderia esticar as pernas para o lado e dormir um pouco. Entretanto, uma moça alta entrou no corredor e foi direto para aquele lugar vago. Pelo menos uma passageira assim. Ela, com displicência, ajeitou os cabelos morenos que desciam pelos ombros e um leve perfume de alfazema tomou conta do ambiente que o fez respirar fundo, principalmente quando viu as pernas de pele lisa serem cruzadas. Fechou os olhos para não deixar que se pronunciassem. Assim que o ônibus pegou a estrada, ela colocou o fone de ouvido e mergulhou num desligamento infinito. Para não invadir a privacidade da jovem, deixou seu olhar se perder na paisagem, levando seu pensamento para as festas do Clube Xadrez, os bailes de carnaval do Country Club e desfiles das escolas de samba na Alberto Braune quando, na mesma idade que daquela jovem, experimentava a liberdade de ser homem e se movimentar pela vida. Foi o tempo das surpresas e descobertas. Entre a passageira e ele havia cinquenta anos de distância e uma vida enfrentada. Realizada. Suas palavras emotivas transbordavam o dicionário. Amar sempre lhe fora uma palavra atraente, mesmo quando ganhava sonoridade irônica. A solidariedade delineara seu pensamento durante anos, mesmo quando ele não passava de um coringa que preenchia lacunas dos amigos que precisavam cobrir os vazios da solidão. Ele, amante da vida, tendo vivido com intensidade do amanhecer ao entardecer, renovando as células ao longo dos anos e resgatando a juventude, suspirava com o olhar perdido nas matas verdes da Serra da Boa Vista, que lhe sorriam.  Estar ali era um suspiro na realidade. Enquanto o ônibus balançava nas curvas ia revendo suas amigas, companheiras de segredos e solidárias nas suas dores. Como amante, ele as acolhia com rosas vermelhas sob lençóis de linho branco. Ele as ouvia sorrindo, acalmando e amparando com esperança as lágrimas que lhes molhavam os dedos dos pés. Enquanto o ônibus subia a serra, percorria o passado numa boa viagem, que umedeceu seus olhos e fez com que os sabores das frutas cítricas tomassem conta do seu paladar que ameaçava enjoar. Durante a maturidade, fora um louva-deus que pousou sobre a vida e perdera-se nas cores das florestas que adentrara. Passou seus dias se sustentando em cordas bambas, sem ter camas elásticas para sustentar-se a cada voo que dava no ar.

Quando o ônibus estacionou na Rodoviária Sul, em Nova Friburgo, seus olhos estavam fechados e molhados. Entre pestanas, ele ainda viu a moça, apressada, saltar e desaparecer no meio de tantos outros passageiros.

***

O relógio teve que despertar três vezes para que ela não perdesse a hora. Precisava dormir! Descansar dos livros, do trabalho e das relações mal resolvidas. Acordava para um final de semana chuvoso e que definitivamente gostaria de ter junto ao avô.

Chegou com a porta do ônibus fechando e sentou-se ao lado de um senhor que se ajeitou com sorriso nos olhos. Colocou o fone de ouvido. De olhos fechados, poderia pensar melhor na vida e compreender as contradições do dia a dia. Será que consigo ter paz na cidade do Rio de Janeiro? Aqui parece que o mundo tem a bunda virada ao avesso! Cercada de embates acirrados, estava aprendendo a viver. Meus avós e eu... tínhamos uma vida tão legal em Nova Friburgo... recordava dos passeios nas montanhas, piqueniques em cachoeiras e viagens da região serrana às praias. Vovó se foi. Cresci e tive que vir para o Rio de Janeiro. Ainda não me situei. Escutando música e sentindo o balanço do ônibus, lembrou-se da voz aveludada dos avós, das tantas vezes que eles a deixavam na rodoviária e acenavam para se despedir. Daquelas mãos envelhecidas que a acolhiam por inteiro e daqueles ombros nos quais encostava a cabeça. O cheiro da mata da Serra da Boa Vista lhe deu um nó apertado na garganta. Estava cansada dos silêncios da cidade grande e da correria das ruas. Sentia vontade de voltar para casa e deitar a cabeça no travesseiro de menina. Sentiu-se suspirosa. Ainda não conseguia usar a liberdade de ser mulher e movimentar-se vida afora; estava confusa com as descobertas. Entre um lamento e outro, num rápido olhar, viu que o passageiro ao lado era um homem muito mais velho. Ah, se tivesse minha idade, seria um cara interessante... Deveria ter sido bonito... Quem sabe? Quem sabe... Estava sem palavras e tinha uma vida de baixa sonoridade. Viu-se diante de incógnitas.  A figura masculina do avô delineou seu pensamento, chegando a concluir que ela ainda não conseguia preencher seus vazios. Observou as mãos enrugadas, finas e elegantes do passageiro. Fechou os olhos e lembrou-se das mãos masculinas que conheceu. Gostava de mãos. As mãos acolhiam e impulsionavam. Fez, então, do velho passageiro alguém que a impulsionasse à vida. As cores explodiram em seu pensamento, suscitando novos sonhos. Adormecida, sentiu-se bela e com alma quieta, tinha que aprender a fazer a vida explodir em cada entardecer, para, no dia seguinte, amanhecer renovada. Suas jovens células precisavam ser reavivadas para que pudesse resgatar a juventude que se perdia a cada momento. Sou mais velha do que ele!? Suspirou fundo com o olhar perdido nas matas verdes da Serra da Boa Vista. Aquele velho homem desconhecido tinha algo que transmitia entusiasmo pela vida. Emanava calor. Juventude. O balanço do ônibus nas curvas a fez rever seus poucos sonhos de travesseiro. Sentia falta dos amigos que deixara em Friburgo. Queria alguém que escutasse suas dores urbanas, que pudesse ouvi-la sorrindo e amparasse com esperança suas lágrimas que molhavam os dedos dos pés. Ainda precisava viver anos para ser desprendida e audaciosa a fim de despertar vontades diferentes. Sua vida era uma realidade cheia de suspiros. Durante o tempo em que o ônibus subia a serra, ela tentava percorrer o futuro numa agitada viagem. Aquele estado de espírito umedeceu suas mãos e fez com que o sabor amargo tomasse conta do seu paladar, já bem enjoado. Adentrava a maturidade como um touro que se esbarrava na vida e sem coragem para atravessar florestas. Não queria passar a vida se sustentando em cordas bambas e sem ter camas elásticas para sustentá-la a cada voo que desse no ar.

Quando o ônibus estacionou na Rodoviária Sul, seus olhos estavam zonzos. Levantou-se e adentrou Nova Friburgo.

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Tereza Cristina Malcher Campitelli

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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