Papo de fila

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

─ Essa é a fila do auxílio emergencial?

─ Não, essa aqui é da vacina.  A do emergencial foi ontem.

─ Tá bom. Vou ficar assim mesmo. Vacina é besteira, mas eu tava passando, vou aproveitar a fila. Será que demora muito?

─ Sei lá! Chegou agora e já tá querendo ser atendido! Deve ter umas duzentas pessoas na frente.

─ É, esse povo adora uma agulhada.

─ Gosta mesmo é de fila. Eu por mim acho melhor uma boa fila do que ficar em casa sem nada pra fazer. Pra falar a verdade, não tem nem comida pra fazer. Na fila a gente cansa, mas pelo menos tem com quem conversar.

─ Se é! Outro dia entrei numa fila, fiquei hora e meia, quando cheguei lá, só tinha um muro na frente.

─ Ninguém te avisou, não?

─ Tava cada um na sua, esperando ganhar qualquer coisa, nem que fosse um pedaço de osso pra sopa. Pobre é assim mesmo, acredita na sorte.

─ Que sorte, mas sorte! Pobre nasceu pra ter azar na vida. E quando pobre tá de azar, já sabe, urubu de baixo defeca no de cima, com licença do palavrão.

─ A senhora tá aqui há muito tempo?

─ Cheguei às cinco. Me disseram que ontem à noite já tinha gente esperando. Acredita que teve um que dormiu abraçado na grade do portão?!

─ Pra tomar vacina?

─ Nada! A gente entra na fila, depois vê pra que que é... Hoje é vacina...

─ Contra quê?

─ Sabe que eu não sei. Deve ser a tal da astrogênica. Uns falam bem, outros falam mal. Vou experimentar. Se eu virar jacaré não vai fazer muita diferença. Quem sabe vou até caçar na lagoa. Só assim vou comer carne.

─ Eu, modéstia à parte, ontem mesmo comi carne.

─ Deixa de contar vantagem homem de Deus! Pela tua cara, tu não vê carne tem muito tempo!

─ Alto lá! Não é por tá pele e osso que tou passando fome!

─ E onde foi que tu comeu carne?

─ Pra falar a verdade, não foi bem carne. Senti um cheirinho de churrasco, fiquei do lado de fora chupando aquele ar. Aí, o pessoal encheu a cara, começaram a jogar osso pelo muro. Mas tinha uns fiapinhos de carne. Uma delícia!

─ Se até duas horas não chegar minha vez, vou-me embora. Amanhã eu volto. As crianças ficaram sozinhas em casa. Quer dizer, tem a Crenilda que toma conta.

─ Ainda bem que a senhora tem uma pessoa pra ajudar...

─ Pessoa coisa nenhuma.  Crenilda é a cachorra vira-lata lá de casa.

─ Bem, acho que eu já vou indo...

─ Mas já? Não vai esperar? Daqui a pouquinho chega a nossa vez!

─ Tem uma fila lá no outro lado da cidade.

─ Fila de quê?

─ Não sei, não. Mas dizem que é uma fila das boas...

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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