Há algo reverberando no ar, a nos lembrar que o tempo passa, a vida urge e, às vezes, é necessário também parar um pouco, refletir e agradecer. Desde janeiro deste ano, em homenagem aos dez anos da tragédia de 2011, uma melodia de carrilhão ecoa, a cada hora, por todo o Centro de Nova Friburgo. A música daqueles antigos relógios da vovó ressoa e, logo em seguida, são marcadas as horas, também pelo som melódico de um sino.
Somente então, um ou dois minutos depois, começam a soar as tradicionais badaladas da Igreja Matriz. Ao meio-dia e às seis da tarde, ecoa ainda o carrilhão da Catedral, numa verdadeira festa de sons celestiais, ora cortando o silêncio da clausura da pandemia, ora se misturando ao burburinho da cidade.
O que muita gente não percebeu ainda é que a música que se escuta primeiro não vem da Igreja de São João, na Praça Dermeval Barbosa, e sim da Capela de Santo Antônio, na Praça do Suspiro, símbolo maior da reconstrução de Friburgo nesses dez anos pós-2011.
Mas a melhor surpresa está por vir: da próxima vez que você escutar a melodia dos sinos da igreja do Suspiro, saiba que de fato estará ouvindo uma das mais bonitas árias de Georg Friedrich Händel, compositor barroco alemão que viveu entre 1685 e 1759 (ENTENDA A RELAÇÃO).
De Cambridge para o Big Ben
Os 16 toques de apenas quatro notas em tom Mi Maior, emitidos a cada hora cheia, são a famosa Melodia de Westminster, também chamada de Carrilhão de Westminster ou Quartos de Hora de Westminster, criada em 1793 na Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
Não se sabe ao certo, até hoje, quem exatamente a compôs, se o reverendo que a encomendou, seu professor assistente ou um dos brilhantes alunos daquele prestigiado campus.
A Melodia de Westminster foi entoada pela primeira vez pelos sinos da Igreja Saint Mary the Great, em Cambridge, e ganhou fama mundial ao ser tocada pelo carrilhão do relógio mais icônico do mundo, o Big Ben de Londres, a partir de 1859.
Quando tocadas a cada 15 minutos, como manda a tradição, as notas seguem uma sequência pré-determinada que só os verdadeiros conhecedores e os relojoeiros mais renomados sabem (ENTENDA).
“Eu sei que o meu Redentor vive”
O fato é que essa melodia, muito comum em relógios de parede antigos, pendulares, foi extraída da belíssima ária “I Know That My Redeemer Liveth” (Eu sei que meu Redentor vive), da terceira parte do oratório “Messiah” de Händel, composta meio século antes. (OUÇA A ÁRIA CLICANDO AQUI). A letra foi baseada nas Sagradas Escrituras, como versos de Jó e Coríntios, que dizem:.
“I know that my Redeemer liveth, and that He shall stand at the latter day upon the earth. And though worms destroy this body, yet in my flesh shall I see God. (Jó 19: 25-26)
For now is Christ risen from the dead, the first fruits of them that sleep. (Coríntios 15: 20)”
(Traduzido para a Bíblia como: Eu sei que o meu Redentor vive e que no fim Ele se levantará sobre a terra. E, depois que o meu corpo estiver destruído e sem carne, verei a Deus. Pois Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo as primícias dos que dormem.)
Professor de Música friburguense analisa: “notas-chave”
Segundo o professor friburguense de Música e Canto Lírico Roberto Henrique Fernandes de Oliveira, hoje lecionando na Universidade Federal de Santa Maria (RS), quando se ouve a ária e se lê a partitura, é possível identificar perfeitamente a melodia do carrilhão.
“A Melodia de Westminster é uma variação da ária de Händel. Claro, se pensarmos que, pela natural limitação da construção de um sino, sua estrutura, transporte, afinação etc., teria que haver uma simplificação na escolha das notas para essa melodia tão popular. Foram escolhidas as notas-chave da ária händeliana”, analisou o professor Roberto, a pedido de A VOZ DA SERRA.
“Acabei de ver Deus diante de mim”
Encomendado pelo Rei George I, o oratório “Messiah” (ou “Messias”) conta a vida de Jesus Cristo desde a sua anunciação profética, seu nascimento, vida, morte e ressurreição. A peça completa tem duas horas e meia de duração e inclui o conhecido coro "Aleluia".
O “Messias” foi composto por Händel em 1741 e estreou na Páscoa do ano seguinte, em Dublin, na Irlanda. Enquanto compunha, conta-se que Händel quase não comia: suas refeições permaneciam à sua porta praticamente intactas. A um empregado, logo após compor “Aleluia”, Georg Friedrich teria dito, eufórico: “Eu acabei de ver todo o Céu e o próprio Deus diante de mim”.
Händel foi sepultado na Abadia de Westminster, onde trabalhou por muitos anos compondo para a realeza, com mais de três mil pessoas presentes ao seu funeral. O público em geral também gostava de suas obras.
Uma estátua erguida em sua homenagem mostra o compositor segurando a partitura que abre “I Know That My Redeemer Liveth”. E a cada hora hora, os badalos mais famosos do mundo mostram que ele, após 262 anos, permanece entre nós.
Pároco: convite a “parar por um pequeno instante”
Em entrevista ao jornal A VOZ DA SERRA, o padre Miguel Angel, pároco da Paróquia de Santo Antônio e São Francisco de Assis e responsável pela Capela de Santo Antônio, explica que o badalo dos sinos nas igrejas, sejam elas grandes ou pequenas, chamam as pessoas à oração, além de marcar as horas e acontecimentos importantes.
“O badalar dos sinos exprime os sentimentos do povo de Deus, quando exulta ou chora, e convida os ouvintes a parar por um pequeno instante, fazer uma oração, dar graças ou mesmo fazer uma súplica ou pedido”, afirma o sacerdote.
Segundo ele, como a Capela de Santo Antônio é um bem tombado estadual (a construção foi concluída em 1884 e a torre dos sinos, erguida em 1948), os três sinos existentes no campanário são fixos.
“Para haver movimento, precisariam ser deslocados mais para dentro do campanário ou terem seus cabeçotes e contrapeso modificados, promovendo alterações significativas no visual da fachada. Além disso, oscilações dos sinos em movimento, a médio e longo prazo, poderiam resultar em danos à estrutura da capela”, explica.
Por isso, após estudos, optou-se pelo sino ou carrilhão eletrônico digital, um aparelho programável que reproduz e amplifica o som do próprio sino e de outros sinos. O sino maior da capela pesa 56 quilos e emite nota entre Sol e Sol sustenido; o médio pesa 40 quilos e tem nota entre Lá e Lá sustenido; e o menor, de 32 quilos, soa entre Si e Dó.
Do Big Ben até Friburgo
Templo maior da Melodia de Westminster agora entoada também pelo Suspiro, o Big Ben, como se sabe, é o nome do maior sino do carrilhão no alto da torre de 96 metros de altura do Palácio de Westminster, sede do Parlamento Britânico e onde o corpo de Händel foi sepultado.
A torre do relógio, batizada como The Clock Tower, agora leva o nome de Elizabeth, em homenagem à rainha. O nome Big Ben é uma homenagem ao então ministro Sir Benjamin Hall, que inaugurou o relógio.
O sino principal do Big Ben, com suas 14 toneladas, soou pela primeira vez em 31 de maio de 1859. Os outros quatro menores, cada um com a sua nota, é que tocam a Melodia Westminster, em tom Mi Maior, e as notas Mi, Si, Sol sustenido e Fá sustenido.
Os sinos não têm badalos: são tocados por batidas de martelos externos, acionados por cabos.
Em estilo neogótico, a torre do Big Ben é um ícone cultural britânico. Em 162 anos de história, poucas vezes os ponteiros desse relógio com quatro mostradores pararam: algumas vezes por causa de nevascas; outras, por pousos de uma quantidade absurda de pássaros; em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial, para evitar ataques de zepelins alemães; e em 1941, quando um bombardeio alemão danificou um dos mostradores. Em 30 de janeiro de 1965, os sinos foram propositalmente silenciados durante o funeral do estadista Winston Churchill.
Na Catedral, só um sino do carrilhão vem tocando
A exemplo da grande maioria dos friburguenses, nem mesmo o padre João Machado Evangelho, pároco da Catedral São Batista, já tinha se dado conta do novo som de sinos ecoando a partir da Capela de Santo Antônio, na Praça do Suspiro.
Há algum tempo os quatro sinos da Catedral deixaram de tocar juntos ao meio-dia e às seis da tarde, depois das tradicionais badaladas. Hoje, apenas um dos sinos do carrilhão, o menor deles, voltado para a Avenida Alberto Braune, está tocando.
Alertado por A VOZ DA SERRA, o padre João pretende levar o assunto à próxima reunião do Conselho Econômico Pastoral. A ideia é sondar se os sinos precisam de manutenção e ajustes.
Diferentemente de outros da cidade, o carrilhão da Catedral, embora também acionado automaticamente, reproduz o som dos próprios sinos em movimento.
Post Scriptum...
Para quem não consegue ouvir diariamente o som dos sinos da Capela de Santo Antônio, uma dica que pode amenizar esta lástima: alguns desses sinos de vento, feitos de pequenos tubos metálicos e vendidos em feiras e lojas de artesanato, tentam reproduzir, se não o mesmo som, pelo menos o mesmo tom e as notas do carrilhão mais famoso do mundo.
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