Praticamente quatro meses após a intervenção da Prefeitura de Nova Friburgo, a Clínica Psiquiátrica Santa Lúcia, em Mury, ainda tem 111 internos. Um número que poderia ser menor caso o município já tivesse implantado pelo menos uma das três Residências Terapêuticas (RTs), prometida para até o fim do ano passado.
Segundo informações da equipe de saúde mental da prefeitura, em 4 de abril, quando o município assumiu a gestão da clínica de 56 anos, havia 118 internos. Sete pacientes receberam alta dentro do processo de desinstitucionalização (que prevê uma rede de apoio aos ex-internos e suas famílias): dois de Friburgo, um de Cachoeiras, um de Duas Barras, um de São Sebastião do Alto, um de Guapimirim e um de Teresópolis.
Há casos, no entanto, de pacientes psiquiátricos que receberam alta antes da mudança de gestão, sem o acompanhamento da equipe de desinstitucionalização, como alega a prefeitura e o MP Estadual. São pessoas com transtornos graves que hoje perambulam por ruas e hospitais de Friburgo e municípios vizinhos sem estrutura familiar para abrigá-los e sem qualquer chance de voltar para a Santa Lúcia, que desde novembro está fechada para internações.
Um desses ex-internos é E., de 68 anos. Com a fala desconexa, ele pode ser visto percorrendo as ruas do Prado, no distrito de Conselheiro Paulino, de madrugada, remexendo incessantemente sacolas de lixo (abaixo). Esquizofrênico, segundo familiares, ele se recusa a tomar medicação em casa, onde mora com uma irmã de 72 anos, após várias internações na Santa Lúcia. Durante um surto, segundo a família, precisou ser contido na rua com uma injeção de haldol (haloperidol) aplicada por funcionários do CAPs.
Outro ex-paciente é W., de 22 anos. Inquieto e agressivo durante os surtos psicóticos, o rapaz, esquizofrênico desde os 17, vive fugindo de casa, em Cordeiro, onde foi morar com o pai e a madrasta, e também do hospital da cidade, para onde é levado quando entra em crise. Na rua, já foi espancado e voltou para casa ferido e sangrando, para desespero da mãe (abaixo). Em casa, já derrubou a mãe no chão. Ela mostra os joelhos ralados e diz que o filho tentou agredir o próprio pai. Esta semana, após mais uma fuga do hospital, onde precisou ser amarrado a uma maca (abaixo), W. foi transferido para o Raul Sertã, em Friburgo.
Caminho sem volta
Segundo Sheila Vargas, promotora de Justiça da Força-Tarefa Desinst do MP, que vem acompanhando todo o processo, o fechamento das vagas na Santa Lúcia é um caminho sem volta. “A reabertura dessa porta é irreversível”, disse ela sobre o pleito dessas famílias. A promotora ressaltou, no entanto, que o MP vai “apurar esses casos pontuais e tentar acolher adequadamente essa demanda”.
Famílias sem condições de abrigar doentes psiquiátricos que entram em crise são orientadas a procurar o Caps de sua cidade ou, em casos extremos, a Defensoria Pública para pleitear judicialmente o acolhimento pela Rede de Atenção Psicossocial (Raps).
Já não existem, em toda a Região Serrana, outras clínicas públicas que ainda aceitem internar pessoas com transtornos mentais. “As que ainda não foram fechadas estão em processo de desinstitucionalização”, explica Sheila.
A sugestão do MP em setembro de 2021, após um censo inédito sobre os então 110 internos da Santa Lúcia, era encaminhar 52 pacientes para RTs, dar alta a 31 e mandar seis de volta para casa, em seus municípios de origem.
A primeira RT de Nova Friburgo, que a prefeitura limitou-se a informar que será inaugurada “em breve”, sem fornecer maiores detalhes, se somará aos demais dispositivos que integram a atual Rede de Atenção Psicossocial (Raps) de Nova Friburgo: o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) II), o Caps AD, para alcoólatras e dependentes químicos; o Caps infantil; e sete leitos emergenciais de Saúde Mental no Hospital Municipal Raul Sertã, além da Clínica Santa Lúcia. Ainda segundo a prefeitura, o Caps II está “em processo de migração” para Caps III, com atendimento noturno.
Processo necessariamente lento
Segundo a equipe de saúde mental da Prefeitura de Nova Friburgo, o processo de desinstitucionalização é lento justamente para dar tempo à organização dos familiares dos pacientes e todos os demais entes envolvidos, incluindo as prefeituras e suas respectivas Raps. “A Secretaria Municipal de Saúde tem trabalhado para acolher e conscientizar os familiares sobre o processo de desinstitucionalização, que visa a modificar a forma de organização das instituições psiquiátricas, criando estruturas que venham substituí-las. Através de medidas adequadas e humanizadas, realizando de forma segura e cuidadosa a reinserção dos pacientes na comunidade, dentro do que é possível”, afirmou a prefeitura.
De acordo com o Ministério da Saúde, RTs são casas localizadas no espaço urbano, constituídas para responder às necessidades de moradia de pessoas portadoras de transtornos mentais graves. O número de beneficiários pode variar de uma a oito pessoas, que deverão contar com suporte profissional sensível às demandas e necessidades de cada um, através do Caps de referência, de uma equipe da Atenção Básica de Saúde ou de outros profissionais. O processo de reabilitação psicossocial deve buscar a inserção do beneficiário na rede de serviços, organizações e relações sociais da comunidade.
“Logo no seu início, as ações de desinstitucionalização no Brasil depararam-se com uma questão: o que fazer com pessoas que poderiam sair dos hospitais psiquiátricos, mas que não contavam com suporte familiar ou de qualquer outra natureza. Por esta razão, a II Conferência Nacional de Saúde Mental, em dezembro de 1992, ressaltou a importância estratégica da implementação dos então chamados lares abrigados para a reestruturação da assistência em saúde mental no país”, afirma publicação do Ministério da Saúde.
Maioria sem ter onde morar
O censo que traçou o perfil dos internos da Santa Lúcia, realizado pela Coordenação de Atenção Psicossocial da Secretaria Estadual de Saúde e apresentado pelo MP em setembro (CONFIRA AQUI), revelou que um quarto dos pacientes estava ali há mais de dez anos, a maioria tinha na bagagem entre duas e dez internações, quase 60% não tinham onde morar fora da clínica e a única atividade era "caminhar pela clínica durante o dia". A grande maioria tomava múltiplos medicamentos e, antes da Santa Lúcia, se tratava no Caps.
O censo revelou ainda que a clínica, localizada há mais de 50 anos em Mury, recebia pacientes de outros 15 municípios, sendo Teresópolis o segundo maior contingente, depois de Friburgo. Com base no censo, o dossiê do MP indicou um planejamento para todos os 16 municípios internantes, que se responsabilizariam por seus pacientes. Para Friburgo, por exemplo, a primeira RT, para 26 pessoas, estava prevista para sair até o fim de 2021. A cidade ainda ganharia mais duas, segundo informações do MP.
O dossiê indicou ainda que “a existência de transtorno mental não justifica a manutenção dos internos em manicômio por mera condição psíquica” e constatou “inadequação da clínica para o tratamento de transtornos mentais”. “Logo, o motivo real da permanência é o próprio processo de institucionalização, típico da instituição manicomial”, afirmou um trecho.
A lei antimanicomial
Uma lei de 2001, de autoria do sociólogo e ex-deputado federal Paulo Delgado, determina a desativação dos manicômios em todo o Brasil, sem no entanto estabelecer prazos. A lei acaba com o modelo de internação forçada, contra a vontade do paciente, e impõe tratamento digno.
Em Nova Friburgo, o prefeito Johnny Maycon anunciou, em maio de 2021, a intervenção na Clínica Santa Lúcia e a não renovação do contrato de prestação de serviço de internação psiquiátrica para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). A Câmara Municipal derrubou o decreto e a questão foi parar na Justiça, mas prevaleceu o entendimento da desinstitucionalização.
O maior e mais antigo hospital psiquiátrico do Brasil, o Instituto Municipal Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, na Zona Norte do Rio, fechou as portas em novembro de 2021, quando os dois últimos internos foram transferidos para uma RT.
Em novembro passado, atendendo a uma solicitação do Governo do Estado, a Prefeitura de Nova Friburgo fechou a porta de entrada de pacientes na Santa Lúcia, enquanto dava alta à primeira paciente desinstitucionalizada. Paralelamente, o município lançou processo seletivo para suprir os Caps de profissionais de saúde.
Brasil tem apenas 52 emergências psiquiátricas
Um estudo desenvolvido por pesquisadores das Faculdades de Medicina da USP e do ABC Paulista revela que o Brasil tem apenas 52 unidades de emergências psiquiátricas públicas. As conclusões apontam também falta de estrutura para o atendimento de crianças e adolescentes, superlotação de salas de curta permanência e falta de vagas para internação, quando necessária, noticiou semana passada a Agência Brasil.
O trabalho tomou como ponto de partida o número de 83 unidades identificadas pela Associação Brasileira de Psiquiatria em 2019. A partir dessa lista, os pesquisadores constataram que 17 já não existiam mais e 14 não eram emergências psiquiátricas, e sim, serviços de emergência geral.
Previstas como parte integrante das Raps desde 2018, emergências psiquiátricas fornecem subsídios para avaliar se há a necessidade de internação. Dependendo da gravidade do caso, uma avaliação clínica vai determinar qual o caminho a seguir: em até 72 horas o paciente recebe alta para um acompanhamento ambulatorial ou é encaminhado para um Caps, que seria um tratamento no regime intensivo, ou é encaminhado para um leito de psiquiatria dentro de um hospital geral ou psiquiátrico mesmo.
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