Aline de Moraes é professora do Colégio Anchieta e contadora de histórias. Criou o canal de contação de histórias @historiasmuitoaocontrário, no Instagram, no dia 19 de março, durante a quarentena. O objetivo era entreter e incentivar as pessoas a cumprirem o isolamento social necessário. Iniciativa essa que vem se replicando na internet, durante a pandemia do novo coronavírus.
Caderno Z: Como você se tornou contadora de histórias?
Aline de Moraes: A minha história se mistura com a contação de histórias. Eu tive depressão na adolescência, dos 17 aos 20 anos. Fui diagnosticada com TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) e tudo aconteceu depois de perder vários parentes queridos vítimas de câncer. Um dia, assisti ao filme “Patch Adams, uma lição de amor”. O filme narra a história de um médico que usava a contação de histórias como terapia para os pacientes. Aquilo me inspirou e resolvi contar histórias no hospital do câncer infantil Mário Kroeff, no Rio de Janeiro. No primeiro dia, cheguei com uma fantasia improvisada e uma criança, que estava fazendo quimioterapia, falou algo que só a sinceridade dos pequenos permite:
— Você acha que eu acredito que você é uma boneca?
Eu senti que não poderia perdê-la e respondi:
— Você acha que eu acredito que você é só uma criança?
Desde que nossos olhares se encontraram, há 16 anos, nunca mais a contação saiu da minha vida. Aquelas crianças me resgataram, me curaram da depressão. Então, fiz o curso com o professor Laerte Vargas para ser uma contadora de histórias profissional e amo o que faço.
Por que contar histórias, qual é o alcance da contação?
A contação de histórias transmite conhecimento, vivências e valores. Colabora no processo de ensino- aprendizagem e tem como pilar a empatia. Essa é a palavra-chave. Muitas vezes, a narrativa de um personagem nos toca, acorda os nossos sentimentos e nos identificamos com ele. É uma dança de olhares entre o público e o contador. Contar histórias é doar e receber amor. O contador é alguém que acredita na história contada e vivencia isso junto com a plateia. “É um sonho sonhado junto, que vira realidade”. Embora, os contadores profissionais façam cursos para aprender técnicas, todos nós podemos contar histórias. Os nossos avós ou pais sentavam ao pé da nossa cama e contavam lindas histórias, que eram lidas, inventadas ou vividas por eles. É uma transmissão oral que vem desde os Griôs, nas tribos africanas, que passavam ensinamentos às crianças da tribo, através da contação de histórias. Eles explicavam a origem de todas as coisas e dos seres, por exemplo, como na história africana “Por que a tartaruga tem o casco quebrado”.
Como você teve a ideia de criar o canal @historiasmuitoaocontrario?
É a segunda vez que a contação de histórias me dá a mão! Assim com todos, diante da quarentena, tive várias perdas e sonhos adiados. Um deles era o primeiro curso que eu daria, em parceria com o amigo e contador Murillo Soares. Esta formação começaria no dia 18 de março, no Solar da Arte, uma casa de cultura e arte da querida Jane Ayrão, que concentra cursos, workshops e oficinas de vários tipos, presenteando Nova Friburgo. Quando a quarentena chegou, pensei que o projeto do curso deveria voar e percebi que as pessoas estavam muito tristes. Então, em 19 de março, criei o canal @ historiasmuitoaocontrário para contar uma história a cada dia de quarentena. É uma experiência que tem me trazido muita felicidade, porque compartilho, diariamente, histórias com 620 pessoas que nunca me viram e mesmo assim, sorrimos umas para as outras, através das telinhas do Brasil.
Por que você acha que a contação de histórias ganhou a internet?
A contação de histórias vem ganhando mais espaço, graças ao trabalho de muitos contadores que abriram caminho pela TV, como os inigualáveis Bia Bedran e Francisco Gregório filho e hoje, com contadores, como: Murilo Soares, Marisa Maia, Márcia Arero, Marcelo Serralva, que conta histórias, produz e vende os próprios instrumentos de sonoplastia, Belinha e sua Malinha e outros. Quem agradece é a leitura, que começa a chegar aonde precisa. As histórias são livros que encontram colégios, crianças, jovens, adultos e idosos. A quarentena aflorou a nossa necessidade de partilha, de cuidado, ressignificou o abraço que não foi e dimensionou a saudade que é!
Que tipo de histórias você conta ou acha que possa ser contada?
Acredito que todo tipo de história pode e deve ser contada, respeitando-se a fase de desenvolvimento da criança. Os clássicos de Grimm não devem ser abolidos, assim como Monteiro Lobato. Pelo contrário, são obras, cuja beleza está atrelada a uma contextualização histórica de valores e costumes que retratam épocas das mais diversas sociedades. Estas obras precisam ser vistas sob esse olhar. Desde a caneta de pena, até a caneta digital dos tablets, tudo aquilo que é escrito com amor e gera empatia pode ser repertório da contação de histórias. A obra vastíssima de Monteiro Lobato, por exemplo, levou a contação de histórias para a tevê. O Sítio do Picapau Amarelo encantou todos os contadores de histórias como eu, que era uma telespectadora assídua e naquela época, as histórias já começavam a ser transmitidas através de uma tela.
Aline, muito obrigado por esses belos exemplos...
Eu é que agradeço ao Caderno Z de A VOZ DA SERRA, não apenas em meu nome, mas em nome de todos os contadores do Brasil, que acreditam na magia e no poder transformador da palavra escrita, falada, cantada e encantada. Agradeço também aos queridos amigos que sempre abraçaram a contação de histórias, como Jane Ayrão, Jeany Amorim, Martha Pereira, Alexandre Nicola, Suzane Erthal e Beatriz Canela e a loja Interações Toys. É uma arte que precisa do feitiço de encantamento da amizade para acontecer.
Curso de Contação de História com dois meses de duração e certificado. Solar da Arte, (22) 2010-9771.
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