Notícias de Nova Friburgo e Região Serrana
Efeito blasé
Para pensar:
“No Brasil, a miséria é explicada pela corrupção.”
José Padilha
Para refletir:
“Não se enganem. Uma gotinha no oceano faz, sim, muita diferença.”
Zilda Arns
Efeito blasé
Certamente um dos piores males de nosso tempo reside no que a publicidade costuma tratar como “efeito blasé”, que é basicamente a incapacidade de reagir a novos estímulos com as energias adequadas, em meio a uma postura que mistura ceticismo, apatia ou indiferença, geralmente causada por tédio, cansaço, esnobismo ou conveniência.
Entende-se, enfim, que o cidadão médio é bombardeado constantemente por tentativas invasivas de convencimento, e acaba se isolando, se defendendo, criando uma barreira que a comunicação precisa levar em consideração.
Saturação
Os efeitos desta saturação não se fazem sentir apenas na publicidade, mas em várias outras áreas.
Poderíamos citar, por exemplo, a forma como a abundância de misérias - quer seja nas ruas ou nos noticiários - acaba por reduzir a sensibilidade de quem vê, lê ou escuta, muitas vezes como forma de defesa diante da impotência ou insuficiência de condições para mudar o quadro narrado, ou para reduzir de forma contínua o sofrimento alheio.
Conveniente
Pessoas, em resumo, também saturam, e em casos mais sórdidos isso pode vir a ser aproveitado por quem é materialmente beneficiado por essas doses contínuas de sofrimento ou desigualdade que aos poucos passam a fazer parte da paisagem, a serem naturalizadas, e vão deixando de incomodar até o ponto em que nos esquecemos que existem.
Aos poucos passamos a aceitar situações construídas e artificiais como parte do jogo, algo que “sempre existiu”, como “assunto antigo”.
Bolhas
A essa característica de nossa natureza, os tempos modernos trataram de acrescentar algorítmos que filtram nossa percepção de mundo a partir de tendências comportamentais por vezes ainda sutis, e aos poucos nos envolvem numa bolha de conforto e de reforço, dentro da qual reverberam apenas ideias agradáveis e a sensação de estarmos certos, com razão, e fazendo a nossa parte em meio a uma luta importante e maniqueísta do bem contra o mal.
Sem questionamentos, sem confrontos, dúvidas.
Realidade editada
A união das duas pontas desenha uma sociedade para a qual a verdade, na maioria das vezes, já não é boa o bastante, e pode ser jogada para debaixo do tapete ao clique de um botão.
Basta deixar de seguir, excluir, bloquear.
Anestesia
Quem quer saber de problemas ou escutar ruídos e chiados, quando pode ouvir apenas a música de sua preferência?
Quem quer ser lembrado sobre imperfeições, sobre a necessidade de fazer mais, quando os elogios e a sensação de estar fazendo a sua parte pingam o tempo todo a partir de fontes selecionadas?
Inversão
A coluna, claro, não faz esse desabafo de forma gratuita.
Desde que começamos a expor o grande prejuízo causado ao erário através de uma opção extremamente infeliz para a aquisição de medicamentos, posta em prática ainda no processo de transição, várias vozes começaram a fazer críticas ao trabalho de apuração realizado.
Imagine então se estivéssemos falando também sobre a crise na esterilização, igualmente ocorrida em 2017, e as consequências que se desenham para o futuro próximo.
Sono profundo
“Quem ama a cidade não faz críticas”, “esse tipo de notícia afasta turistas”, “isso é assunto velho”...
Em resumo: tolera-se o problema, mas não a sua exposição ou qualquer coisa que possa perturbar a suspensão da descrença em relação à imagem que gostamos de conceber a respeito de nós mesmos.
Seletividade
Assim, a fim de não contribuir para piorar ainda mais este efeito blasé, já tão consolidado em Nova Friburgo, a coluna decidiu não mais publicar todos os quarenta e poucos casos de sobrepreço que ultrapassaram a marca dos 100%, na adesão à ata de registro de preços realizada no início de 2017.
Seria chover no molhado, e talvez desgastar algo que não pode começar a ser visto como normal.
Que tal essa?
Em clima de despedida, a coluna traz hoje o exemplo do Tramadol 50 mg em cápsulas, cujo sobrepreço alcançou incríveis 1727% (!), apenas para reforçar a dimensão da anormalidade do que andou se passando por aqui.
Através do processo 1077/16 o medicamento foi adquirido a R$ 0,11, ao passo que pelo 2565/17 pagou-se R$ 2,01.
E acreditem, nos mesmos processos ainda teve medicamento com diferença percentual maior que esta.
Isolamento
Diante deste tipo de quadro o Palácio Barão de Nova Friburgo se fecha na busca por qualquer detalhe que possa enfraquecer as denúncias, incapaz de admitir que errou e errou feio, que deve explicações e, acima de tudo, deve um pedido de desculpas às famílias cujos membros sentiram na pele as consequências da escassez de medicamentos, comprados em quantidade menor do que poderia ter sido recebido pelo mesmo valor investido.
Incompatível
Um processo administrativo para apurar responsabilidades seria o mínimo a se esperar de qualquer administração que entendesse neste tipo de denúncia uma aliada na busca por uma gestão comprometida com o interesse coletivo, ou que ao menos não tivesse participação direta em tudo o que aconteceu. Esta coluna já provou muitas vezes que saberia reconhecer e elogiar esse tipo de postura.
Porque, definitivamente, se esforçar por rebater com tecnicismos e salamaleques o que está tão configurado e embasado não é coisa que se espera de um governo que tenha respeito pela vida e pela dor de seus contribuintes.
Quem se importa?
Quanto aos críticos, certo é que se esse tipo de situação fosse observado num ambiente empresarial redundaria em demissão por justa causa, assinada pelas mesmas pessoas que as encaram com normalidade quando dentro do serviço público.
Infelizmente, ao que parece, para muitos de nós o Raul Sertã e algumas das instituições que dependem do pagamento de subsídios são apenas uma despesa indesejada, ou uma paisagem borrada no canto dos olhos em meio a deslocamentos protegidos por boa música e ar-condicionado.
Passando a bola
O cenário, enfim, já foi apresentado, e a coluna vai virar essa página.
Cá entre nós, é muito fácil criticar a imprensa, dizer que não mostra a realidade, mas insistir em desviar o olhar e tapar os ouvidos quando ela cumpre o seu papel.
E isso acontece o tempo todo.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
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