Um coro musicado por gaitas, trombones e violinos

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Vivemos mergulhados em narrativas, em tantas que podemos confundir as nossas com as incontáveis que nos cercam. Envolvemos e somos envolvidos de modo que a nossa voz se mistura com as de num coro de vozes diversas, algumas afinadas, outras desafinadas. Às vezes, musicadas por gaitas, trombones e violinos.

Peguei o livro de Raimundo Carrero, “A Preparação do Escritor”, pensando nas vozes que me fazem ser o que sou a cada momento. O escritor é uma criatura construída por intermináveis vozes narrativas, a cada texto ele se esforça para reunir suas vozes com outras imaginadas. Na vida e na literatura somos narrados e narradores. Somos resultado de uma profunda indefinição, por isso e só por isso, buscamos elaborar narrativas genuínas. Assim, construímos nossa identidade individual. 

Quem quer ser um João Ninguém?

Fazemos magia quando construímos um texto? Talvez. O autor não é o narrador, tampouco o narrador é o autor. O autor é apenas um ser humano que tem uma ideia. Já o narrador nada mais é do que um ser ficcional, portanto inexistente, que conta a história do autor. Costura os panos das mangas. O autor tem uma ideia abstrata, o narrador a concretiza num texto. Na literatura quem conta a história é simplesmente um narrador. Mas na vida quem narra é o indivíduo; o escritor é o maior inventor e contador de histórias de todos os tempos. 

Quando lemos um livro passeamos pelo âmago do escritor, que desponta em cada página através das narrativas que conta. A voz dele é capaz de penetrar na alma do leitor. E essa voz, a do narrador, passa a fazer parte constitutiva da identidade do leitor. Como aconteceu comigo quando li “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry. Cada leitor desvela as vozes do autor através da voz de um narrador, aquele nascido no mundo imaginário. Mas o escritor nunca vai ter acesso à voz do leitor. Quem pensa que sabe de tudo, está completamente enganado. Porque o escritor é um leitor por excelência. Pelo menos deveria ser assim. Porém a grande parte dos leitores não faz literatura. Ou seja, as narrativas estão cheias de hiatos.

Mas é verdade. O narrador é sempre o principal personagem. Seja na ficção ou na realidade, aquele que narra uma história é o protagonista do momento. Sempre. Sempre estamos cercados por narrativas emergentes da realidade e da ficção. Mesmo assim, sabemos pouco. Ou quase nada. Por incrível que possa parecer, ainda pensamos que sabemos. Há quem se diga ser o dono de verdades! 

Por sorte a imperfeição e o desafino dão ao leitor beleza estonteante. Ao escritor, a imortalidade.   

“Navegar é preciso, viver não é preciso”, só Fernando Pessoa para terminar esta coluna.

 

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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