O café: subidor de montanhas e destruidor de florestas (Parte 1)

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A Mata Atlântica

“No alvorecer do século 19, os Sertões do Macacu, na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, era uma floresta virgem. Um indevassável labirinto vegetal onde a mata cobre tudo. O sol mergulha os dedos luminosos penetrando apenas oblíquos jorros de luz catedralescos. Quem por ali se atreve, tranca-se no mais tenebroso labirinto. Escutam-se rumores de seres que rastejam, escorregam, esvoaçam. Zumbidos de insetos fuzilantes, longínquos pios de nhambus, jaós, juritis, algazarras de papagaios, araras, maritacas, maracanãs e arapongas. Perfumes de folhagens, de flores, de cascas, de resinas e hálitos de galhos e troncos putrefatos que estalam e se esfarinham sob os pés, inumando-se no próprio ventre da floresta. Recea-se a emboscada do índio e da onça na penumbra. A floresta é um verde turbilhão a contorcer-se em convulsões genéticas.

Por isso mesmo a floresta é o caos impenetrável, a confusão promíscua dos elementos e cósmicas transmutações originais, faz com o homem adentrá-la  cautelosamente, pois em cada moita há um perigo latente. Troncos roídos onde o jararacuçu se enrosca. Folhas e espinhos que queimam. Entra nela o inexperiente incauto e logo vê toda a agressividade. Não eram os grandes troncos, os altaneiros gigantes que o amedrontam, mas a arraia miúda, solerte e vigilante. Tudo se atira contra o violador intruso que ali perturba o equilíbrio ambiental de milênios. Armas invisíveis investem de todo lado e terrivelmente acossam o invasor.

A vegetação rasteira lhe impede a marcha aos tropeções. A preparoba, a buta, o jacaratiá, a negramina, a quina-cruzeiro, as próprias samambaias estorvam-lhe os passos hesitantes. Enrosca-se-lhe os cipós nas pernas e o lançam pelos braços. O homem, então, recua, abre o caminho a facão, mas agulhas e ganchos o espetam e o imobilizam. Contra essas formas que o enrodilham, o fisgam e o amarram, o homem desesperadamente se debatia.

Há ainda os cipós que simplesmente o embaraçam como o imbê, o suma, a abóbora-d'anta, o cruzeiro, o cipó-fogo, o olho-de-boi, o caboclo ou cipó-brasa e o mata-pau enroscando-se aos troncos como serpentes, sugando-os, matando-os, e já então solidamente enraizados substituem a árvore que digeriram. O cipó-mico junta-se à perigosa horda dos arbustos tremendamente cáusticos como a urtiga, o urtigão, o mangangá e o arre-diabo cujo nome exclama a dor da pavorosa queimadura de quem o toca.

Adicione-se a tudo isso os caules e hastes espinhentos que no chão ou no ar lhe barram a caminhada ou que se inclinam para o agarrar: o ananás-pedra, a unha-de-gato, o gravatá, a airi e o côco-roxo, o espinhão, o jaquitá, o icê, o pega-onça, o taquaruçu e outros meios de defesa com que a floresta se atira contra o devassador. Verificamos nesse cenário a luta com que a natureza virgem repele o homem. Em meio a todo esse turbilhão, elegantemente sobem as palmáceas inofensivas como o côco-doce, o pati, o corrupicho, a pindoba, o côco-preto, como que deslocados e perdidos na brutalidade de uma selva em que domina à força e à emboscada.

Ai do desprevenido que se aventure nessa floresta. Para todos os lados que se vire é a mesma agressividade inelutável, os mesmos aspectos que se repetem e o desorientam, a mesma fereza do matagal que o rodeia, o ataca e o encarcera. Ai do prisioneiro da selva.”

Através desse brilhante texto de Alberto Ribeiro Lamego podemos entender o porquê das duas primeiras gerações de colonizadores portugueses não conseguirem penetrar com segurança na floresta e precisavam dos indígenas como guias. A Mata Atlântica com sua vegetação diversificada estende-se desde o Nordeste até o Rio Grande do Sul. As plantas e os animais dessa mata eram raros e muitos deles não seriam encontrados em nenhuma outra floresta. Entre suas espécies arbóreas, mais da metade era endêmica, só existindo nessa região.

Diversos locais dessa mata eram centros de endemismo de pássaros, mamíferos, répteis e insetos. Certos beija-flores, sanhaços, marsupiais, preguiças, sagüis, pererecas, patiobas e inúmeros outros animais estão limitados à Mata Atlântica. Dois terços dos nomes das árvores e praticamente de todos os seus animais são de origem tupi-guarani. Existiam árvores de 35 metros de altura ou mais. Uma única copa de árvore poderia abrigar mil espécies de insetos e a Mata Atlântica como um todo pode ter abrigado um milhão delas.

A serra fluminense, com suas vastas florestas primárias do tipo mesófila, características do bioma conhecido como Mata Atlântica foi poupada até o terceiro quartel do século 18. No entanto, a partir das duas últimas décadas deste século, a floresta será vítima do machado e do fogo do homem branco colonizador. Continua na próxima semana.

  • Foto da galeria

    Serra do Mar por Jean Baptiste Debret. Século 19

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    Flora Brasileira por Karl von Martius. Século 19

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    Existiam árvores de 35 metros de altura ou mais

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