Grandes obras

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Algumas referências pouco elogiosas ao prefeito, à sua família, e especialmente à senhora sua mãe

Contrariando o ditado popular, Machado diz em um de seus livros que a ocasião não faz o ladrão, o ladrão nasce feito, a ocasião apenas lhe dá a oportunidade.  A frase não é bem assim, nem bem Assis. Afinal, reproduzir o que ele escreveu é só estragar o que já nasceu perfeito. Mas no momento não estou com disposição para folhear livros à procura de uma frase. O sentido é esse mesmo e está bem claro, acho eu.

Estou dizendo isso para esclarecer que não sou dos que pensam que todo político, ao assumir um cargo, ou ao menos uma brechinha no Poder, automaticamente se torna desonesto. A ideia generalizada é de que são demais as facilidades e excessivas as leis que os protegem. Então, não haveria como resistir à tentação de retirar ao menos uma lasquinha do dinheiro do povo. Mas não é a ocasião que faz o ladrão. O ladrão é que faz a ocasião.  Além disso, como escreveu Geraldo França Lima, “Povo é um conjunto de ninguém”. Portanto, a quem cabe reclamar quando o bem público vira fortuna particular?

Toda generalização é perigosa e, sem dúvida, há muitos políticos honestos. Pobres de nós se não fossem eles, aí mesmo é que as ratazanas não deixavam nem o farelo do queijo. E é já de saída isentando aqueles que exercem honradamente seus cargos que ouso contar a história seguinte. Não vou dizer o nome da cidade, nem dos personagens. Afinal, não estou aqui para levar um tiro só para satisfazer a curiosidade dos leitores.

Pois bem, num canto qualquer das terras fluminenses, o prefeito mandou construir uma creche. Ação louvável, sobretudo por se tratar de uma localidade humilde e afastada do centro. No centro, sabe como é, todo mundo quer se meter em tudo. Muito diferente é numa ruazinha poeirenta, lá onde Judas perdeu a segunda bota. Bem felizes devem ter ficado aquelas mães, tendo finalmente um lugar para deixar os filhos por algumas horas. Só assim elas poderiam descansar ─ cozinhando, lavando, varrendo, esfregando, passando roupa, dando banho nas que ficaram em casa, cuidando da mãe velhinha. E, nos momentos de folga, ajudando a vizinha doente. Quer dizer, com a creche elas passariam a levar uma vida de madame, com tempo até para tomar banho (quando tivesse água).

Mas o prefeito, como se já não tivesse realizado bastante ao dotar o lugarejo de uma creche (que, conforme as contas apresentadas, custou uma fortuna aos cofres públicos), resolveu reformá-la pouco tempo depois. Tão digna de nota era essa realização municipal que uma repórter resolveu ir conhecê-la e mostrá-la para todo o Brasil. Só um pequeno obstáculo impediu que a histórica reportagem fosse ao ar: a creche não existia. Como assim não existia? Não existia, ué! Nunca foi construída. E mais: até o momento da reportagem, era desconhecido o local (banco ou bolso) onde se encontrava o dinheiro gasto na construção e na reforma desse nada.

No endereço, só um terreno baldio. Entrevistados, os moradores afirmaram que a única creche de que tinham notícia ficava a 8 km. Houve alguma revolta e, lamento dizer, até algumas referências pouco elogiosas ao prefeito, à sua família, e especialmente à senhora sua mãe. No entanto, não deixa de ser louvável a preocupação desse burgomestre que, tendo feito uma obra tão útil, pouco depois se preocupou em reformá-la. Que o imóvel não exista na vida real, isso não o faz menos merecedor dos cuidados do Poder Público. Ele existe na boa intenção do prefeito, no Plano de Governo, nos registros do município. Para que mais do que isso? Esse povo também é muito exigente, e esses repórteres muito fofoqueiros! 

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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