Dois trabalhadores

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 01 de novembro de 2022

Gouveia

Gouveia era um sujeito que vivia para juntar dinheiro. Aos quarenta, já possuía uma fortuna que dava para ele viver mais 200 anos. Estudou à noite porque era de graça, e convenceu o pai a lhe dar o dinheiro com que pagaria a escola. Começou a vida profissional gerenciando uma marcenaria, da qual se tornou sócio e depois proprietário, não sem que o antigo patrão fosse misteriosamente à falência. A marcenaria virou fábrica de móveis e, com talento, persistência e muito trabalho, em pouco tempo Gouveia já estava vendendo mesas, camas e armários até para o estrangeiro. Não gostava de festas, detestava cinema e não perdia tempo ouvindo música.

Apaixonou-se por uma arquiteta e chegou a ficar noivo, mas rompeu o noivado para se casar com a filha de um empreiteiro do ramo da construção civil. Com o sogro aprendeu tanto que acabou abrindo sua própria construtora. O velho não chegou a falir, mas parou de enriquecer, porque o genro concorria com ele metro a metro, terreno por terreno, obra por obra. Preferiu não ter filhos, que tomam muito tempo e dão muita despesa. Quando a mulher pediu o divórcio, entregou-lhe o mínimo que pôde e nunca mais se arriscou com outra, para não ter que novamente desfazer-se de alguns anéis para salvar todos os dedos.

Como eu disse no começo, Gouveia era um sujeito que vivia para juntar dinheiro. Aos quarenta, já possuía uma fortuna que dava para ele viver até os 200 anos. Morreu aos quarenta e dois.

Michelangelo

Tinha uns servicinhos pra fazer na casa e para essas coisas, como para tantas outras, eu sempre tive grande talento para não saber como fazer. O candidato que apareceu ouviu de mim um relato completo do que andava vazando, apagando ou descascando. Perguntei-lhe então o que ele mesmo poderia resolver, e se ele podia indicar outros profissionais para o que estivesse fora de sua especialidade.

─ Deixa comigo. Sou pintor, pedreiro, eletricista e encanador. Depois de amanhã tá tudo resolvido. Vai ficar nos trinques!

“Esse homem é capaz de construir sozinho outra Capela Sistina”, pensei eu. E como eu não era o Papa Sisto, tanto quanto não sou o Papa Francisco, deixei tudo por conta daquela competência exuberante. Oito dias depois ele concluiu a obra do século, tendo feito diversos reajustes e aditivos, tanto no material gasto quanto no preço da mão de obra. Mas, tudo bem, finalmente a casa voltaria a funcionar “nos trinques”.

Estava eu nessa ilusão quando alguém da casa perguntou: “Que umidade é essa aqui na parede?” A essa pergunta seguiram-se outras igualmente desagradáveis: “Por que essa lâmpada não para de piscar?”, “Por que essa porta não fecha mais?” Lá pela décima pergunta, eu já tinha concluído que o meu Michelangelo só tinha feito porcaria. Se eu fosse o Papa Sisto, no mínimo mandava prendê-lo (o Papa Francisco, não, que esse é de boa paz).

Procurei pelo homem, que, depois de muitas explicações sobre a lamentável qualidade do material usado na construção da casa, prometeu voltar na semana seguinte, para finalmente deixar tudo “nos trinques”. Isso já vai para uns cinquenta anos. Não sei se o pintor-pedreiro-eletricista-encanador ainda está vivo. Mas não perdi a esperança de que ele apareça para terminar o serviço. Nos trinques!

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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