Por que o coronavírus atinge mais mulheres?

"Os riscos não são democráticos", diz ambientalista sobre mulheres serem mais infectadas
sexta-feira, 23 de outubro de 2020
por Guilherme Alt (guilherme@avozdaserra.com.br)
Por que o coronavírus atinge mais mulheres?

Divulgado pela Prefeitura de Nova Friburgo e publicado por A VOZ DA SERRA semanalmente, os dados do Painel Covid-19 evidenciam que desde o início da pandemia no município, em abril, o vírus tem circulado com mais frequência no Centro, Olaria e Conselheiro Paulino. Os números mostram que a faixa etária acima de 60 anos e as mulheres são as mais atingidas. 

A ambientalista Letícia Lima (foto) afirma que não é por acaso que as pessoas e os locais mais atingidos pelo coronavírus são os retratados na estatística. Ela explica por que a questão ambiental é um fato importante para o entendimento das consequências dos impactos do vírus em determinados nichos da sociedade e do município.

Segundo Letícia, é comum dissociar a questão social da ambiental, mas elas estão mais próximas do que se imagina. “Uma das principais vertentes que venho pesquisando e me ajudam a comprovar isso é a questão da justiça ambiental. Há vários estudos internacionais e brasileiros que mostram essa conexão de impactos ambientais com as demandas sociais. Não há como proteger uma floresta sem pensar nas populações que estão inseridas nela. São essas pessoas que defendem o ambiente contra possíveis ataques e a Justiça Eleitoral ajuda a unir esses pontos”, diz.

De acordo com a ambientalista, a tragédia das chuvas de 2011, por exemplo, está altamente conectada às mudanças climáticas e quando se analisa quem são as pessoas mais afetadas por esse tipo de evento extremo, destacam-se as mulheres, um grupo muito grande dentro das pessoas consideradas vulneráveis.

Mulheres representam 70% dos que vivem em extrema pobreza

Segundo o Manual Routledge de Justiça Climática, as mulheres são em média mais pobres e menos instruídas que os homens. A pobreza, quando cruzada com a perspectiva de gênero, aumenta sobremaneira a desigualdade em relação às mulheres, criando um verdadeiro obstáculo ao usufruto dos seus direitos. Ainda de acordo com o manual, as mulheres representam 70% do total de pessoas que vivem em extrema pobreza no mundo e, portanto, são as mais afetadas pelos eventos prejudiciais das mudanças climáticas.

“A Covid-19 é uma questão de saúde que afeta pessoas que já estão vulneráveis a outros fatores. As mulheres já sofrem com a pobreza. Quando pensamos nas pessoas capazes de se defender em uma pandemia, consequentemente as pessoas pobres têm menos chances, e dentro desse grupo, as mulheres menos ainda. São dados cruciais para entender esse perfil”, disse Letícia ao justificar os motivos que levam as mulheres a serem as mais atingidas pelo vírus, no município e no mundo.

Interseccionalidade e a sobreposição de opressões

A ambientalista afirma que uma mulher pode ter várias formas de opressão sobrepostas o que contribui para o aumento de sua vulnerabilidade em eventos catastróficos. “Há uma teoria feminista, chamada interseccionalidade, vinda do feminismo negro norte-americano – e que já tem vertentes no Brasil – que mostra como uma pessoa tem sobreposição de opressões. Uma mulher pode ser negra, pobre, homossexual, gay, do sul global, imigrante. Conforme esses fatores se somam, mais vulnerável é a pessoa. Quando falamos de Covid-19, esses efeitos estão se demonstrando sobre esses grupos que tem vários eixos somados. O criador da Justiça Ambiental Robert Bullard, fala como não há surpresa que os mais atingidos sejam desse grupo” destacou.

O professor norte-americano fala de como a Covid-19 evidencia a vulnerabilidade da população mais pobre. “Há uma pesquisa de Harvard que mostra que as pessoas que morrem mais de Covid-19 são justamente as minorias raciais e estão expostas a toda poluição das indústrias que se alocam justamente perto dessas comunidades. Não é de forma acidental, o próprio estado serve para consolidar e direcionar essa escolha em grupos específicos, até sem a ver com dinheiro, mas sim com a raça”, constatou.

“Quando somam os dois olhares da Justiça Ambiental e da Interseccionalidade, percebemos que as mulheres são as mais afetadas pelos impactos ambientais. Os objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU, entre eles, elenca como princípio a igualdade de gênero: “Alcançar a igualdade de gênero e emponderar as mulheres e meninas”. Ou seja, a própria ONU reconhece que essa igualdade de gênero é crucial para o desenvolvimento sustentável. Está tudo conectado. Sabemos em dados que as mulheres são as mais afetadas, então é preciso entender que precisamos de políticas e decisões que contemples todos, mas com foco especial para o gênero”, sugeriu a ambientalista.

“O impacto da Covid-19, por exemplo, não é neutro. As mulheres com todas essas camadas de opressão são mais atingidas. A Covid-19 é uma ilustração do quanto essas questões precisam evidenciadas e as mulheres afetadas. Um dado da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) mostra que 59% dos casos de violência de gênero estão ligadas a questões ambientais”, revelou Letícia.

Bairros industriais são os mais atingidos pela Covid-19

Letícia afirma que não à toa, os bairros friburguenses mais atingidos sejam àqueles que possuem um perfil industrial. Conhecida como capital da moda íntima, o município possui milhares de confecções, cujo perfil de seus funcionários é composto majoritariamente por mulheres negras, que ganham pouco mais de um salário-mínimo, e realizam suas funções em ambientes pouco ventilados e todas próximas umas às outras.

“As mulheres são mais atingidas globalmente, especialmente no sul global, em que tem maioria de pessoas pobres e Friburgo está dentro desse cenário. As mulheres desempenham o papel de cuidadoras tanto profissionalmente quanto em empregos não remunerados, como cuidar dos filhos ou de idosos. Acredito que não seja coincidência que Olaria e Conselheiro Paulino, bairros com muitas fábricas e confecções, sejam também bairros com muita incidência do vírus. Sabemos que as condições de trabalhos nesses ambientes são precários e que a maioria da mão de obra é composta por mulheres. Apesar de não ter certeza, posso imaginar que muitas dessas confecções não pararam – até mesmo porque produziram máscaras e outros equipamentos de proteção – e essas mulheres continuaram a trabalhar e colocadas em contato com o vírus. Quantas empregadas domésticas continuaram a trabalhar?

Em Nova Friburgo, no final do mês de setembro, Nayara Machado, mulher negra, mãe, que trabalhava em uma confecção no bairro Lagoinha foi mais uma vítima do Covid-19 no município. Em março, a Secretaria estadual de Saúde do Rio de Janeiro e a Prefeitura de Miguel Pereira confirmaram a primeira morte por coronavírus no estado. A vítima era uma empregada doméstica de 63 anos que tinha diabetes e hipertensão. Ela teve contato com a patroa, moradora do Leblon, que esteve na Itália e estava com a doença.

“A faixa etária mais atingida no município são pessoas maiores de 60 anos, e se pensarmos na mulher idosa, isso é outro fator que somam naqueles outros citados anteriormente. Por isso que falamos que os riscos não são democráticos, as pessoas não sentem os riscos da mesma forma e a pandemia escancarou esse problema”, concluiu Letícia.

Painel Covid-19

A Prefeitura de Nova Friburgo atualizou na última quarta-feira, 21, os dados do Painel Coronavírus, que contém gráficos da evolução da doença no município e dados detalhados do impacto do vírus nos diversos bairros. Os dados do painel trabalham com os registros contidos no boletim desta semana que constatava até este dia 3.629 casos e 151 óbitos. A doença continua atingindo em sua maioria as mulheres que agora contabilizam 1.966 casos (54,6%) enquanto os homens registraram 1.633 casos (45,8%).

Nos bairros a situação não mudou, sendo o Centro como o bairro com maior número de casos – 499 casos (13,8%), seguido por Olaria – 428 casos (11,8%), Conselheiro Paulino – 315 casos (9,2%) e Cônego – 242 casos (6,7%). .

A população idosa é a mais atingida pelo vírus. São 786 casos (21,7%), em pessoas acima de 60 anos; 762 casos (21%); em pessoas entre 41 e 49 anos; 749 (20,6%), em pessoas entre 30 e 39 anos; 625 casos (17,2%), em pessoas entre 50 a 59 anos e 523 casos (14,4%), em pessoas entre 20 a 29 anos.

O Painel Covid-19 informou ainda que a letalidade do vírus é de 4,16%, que 1,91% da população está infectada, sendo 12,32% profissionais de saúde e que os casos suspeitos são de 0,01% da população. Todos os dados são referentes a última quarta-feira, 21.

Quem é Letícia Lima

Letícia é mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com bolsa de desempenho acadêmico (Faperj/Programa Bolsa Nota 10). Especialista em Direito Ambiental Brasileiro pela PUC-Rio. Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Membro do Grupo de Pesquisa em Direito Ambiente e Justiça (Juma) do Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente (NIMA-Jur) da PUC-Rio. É também ex-presidente da Comissão de Direito Ambiental da 9ª Subseção da OAB-RJ, vencedora dos prêmios Vladimir Garcia Magalhães da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil (Aprodab), em 2016, e José Bonifácio de Andrada e Silva do Instituto do O Direito por um Planeta Verde (IDPV), nos anos de 2017 e 2019.

 

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