Os impactos da pandemia na saúde mental

Pesquisa da Fiocruz aponta que 14% dos entrevistados avaliaram seu bem-estar emocional como regular a muito ruim
sexta-feira, 10 de dezembro de 2021
por Christiane Coelho, especial para A VOZ DA SERRA
Os impactos da pandemia na saúde mental

A Fundação Oswaldo Cruz divulgou, na última semana, os resultados preliminares da série Cenários da Covid-19, que fazem parte do Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (Elsa-Brasil). O objetivo da pesquisa é avaliar o impacto da pandemia da Covid-19 sobre a saúde dos participantes, os efeitos do distanciamento social na redução da morbimortalidade específica da Covid-19 e suas consequências no agravamento de fatores de risco e manejo de doenças crônicas, além dos impactos na saúde mental. A pesquisa ouviu mais de cinco mil pessoas, distribuídas em cinco centro s de investigação do Elsa. Entre os resultados preliminares, estão os impactos da pandemia na saúde mental dos participantes: 14% deles a avaliaram como regular a muito ruim.

Para a psicóloga Karla Magalhães (foto abaixo), as mudanças impostas pela pandemia alteraram significativamente a vida da população mundial. “Tais mudanças exigiram muita flexibilidade, criatividade e condições de adaptabilidade do ser humano frente aos desafios enfrentados. Para nós brasileiros dois fatores merecem maior atenção, uma vez que esbarraram fortemente em nossos valores culturais: primeiro, a necessidade do distanciamento social, marcada por termos que evitar contatos físicos; segundo, a restrição de rituais fúnebres em momentos de despedida dos entes queridos”, explicou ela.

A pesquisa mostrou ainda que mais de 90% dos participantes adotaram as medidas de proteção recomendadas, como o uso de máscaras, cobrir boca e nariz ao tossir e espirrar, lavar as mãos com água e sabão e não cumprimentar as pessoas. Mas, de acordo com Karla, houve valorização dos cuidados com o corpo físico, mas muitos se esqueceram de cuidar do emocional. “A consequência disso pode ser constatada nos dias atuais: muito se cuidou do corpo, evitamos o contato com o vírus, nos protegemos. Mas, achamos que éramos fortes demais. Acreditamos que daríamos conta de tudo sozinhos e então não pedimos ajuda. Não recorremos aos profissionais de saúde mental. E muitos perderam a oportunidade de se cuidarem de uma forma integral. O não cuidado da saúde mental nos momentos de fragilidade emocional pode resultar no agravamento dos quadros, chegando ao que denominamos de transtornos psíquicos, como são os casos de depressão, ansiedade, fobias, dentre outros. Infelizmente, observa-se o aumento desses transtornos no momento atual como sequela de algo não reconhecido e não tratado em sua fase inicial”, revela a psicóloga.

Mulheres são as mais atingidas

Os resultados preliminares da série Cenários da Covid-19 alertam sobre como a pandemia repercutiu significativamente na saúde mental sobretudo das mulheres. Durante o distanciamento social, 24% delas apresentaram sintomas de depressão, enquanto 17% dos homens tiveram os mesmos sintomas. A ansiedade foi citada por  20% das entrevistadas e por 11 % dos homens; 17% delas disseram ter passado por estresse, enquanto o percentual de homens que afirmaram estar estressados foi 10%.

Esse quadro pode ser reflexo da sobrecarga de trabalho apontada pela maioria das mulheres, que acumularam o trabalho profissional em homeoffice com as tarefas domésticas. A pesquisa mostra que as mulheres realizaram - em média - quatro horas a mais de trabalho doméstico do que os homens. A pesquisa revelou também, que 48% dos participantes considerou que as atividades profissionais dentro de casa foram maiores que o costume.

De acordo também com a pesquisa, 1/3 dos entrevistados, que trabalharam em homeoffice, nunca controlavam a hora de começar e terminar um trabalho, em quais dias trabalhavam e quando faziam intervalo no trabalho. “O trabalhar em casa tornou-se uma realidade para muitos brasileiros. Contudo, a população foi pega de surpresa e, portanto, não passou por um período de adaptação.

Consequentemente, observa-se uma desorganização do tempo e falta de planejamento da nova rotina laboral, culminando em exaustivas horas em frente ao computador sem pausas para descanso. Além disso, o funcionário sente-se na obrigação de estar de sobreaviso 24 horas por dia via mensagens instantâneas trocadas por e-mails e Whatsapp. Essa exclusividade e disponibilidade excessiva pode afetar a saúde mental desses trabalhadores, resultando em uma estafa laboral ou Síndrome de Burnout. É de suma importância que possamos estabelecer limites e que possamos criar uma escala saudável de trabalho que inclua as pausas para as refeições e estabelecimentos de início e finalização da jornada diária de trabalho”, alerta a psicóloga Karla Magalhães.

Solidão afeta mais mulheres que homens

Outro aspecto apontado na pesquisa foi que as mulheres sentiram mais a falta de companhia que os homens, 25% mais mulheres se sentiram mais isoladas em relação aos homens, durante o distanciamento social. Foi o que aconteceu com uma entrevistada, que mora sozinha em Nova Friburgo, e preferiu não se identificar. “A minha rotina sempre foi acordar muito cedo, malhar e, da academia ir direto para o trabalho. Além de ter o trabalho normal, das 9h às 18h, eu tinha por hábito, sair à noite, ir ao cinema, à casa dos amigos. Nos fins de semana, quando tinha oportunidade, também visitava amigos fora da cidade. Sempre tive muito contato com o público, clientes e amigos. Com a pandemia, esse mundo que eu tinha de muito contato, conexões, eventos, viagens se reduziu a zero. Com isso, comecei a me sentir muito sozinha. O baque principal foi o fato de a pandemia me impedir de viajar nas minhas férias, hábito que sempre tive. A viagem estava marcada para 15 dias após o início da pandemia. Tive que cancelar tudo. Passei um mês de férias dentro de casa, sem ter contato com ninguém, com meu plano de viagem frustrado e sozinha”, disse ela.

Quando as férias acabaram, para compensar a solidão, ela passou a se dedicar integralmente ao trabalho. “Consequentemente, isso gerou problemas na minha vida pessoal. Comecei a me sentir, ansiosa, irritada, sem paciência, agressiva. Tive que procurar ajuda médica, coisa que nunca pensei que fosse precisar. Não tive o diagnóstico fechado, mas o médico me prescreveu um medicamento que me ajudou muito. E a volta ao trabalho presencial também está fazendo toda a diferença. Estou tendo mais contatos com colegas e clientes, o que também ajuda bastante”, explicou ela.

Para a psicóloga Karla Magalhães, desde o início da pandemia houve um expressivo aumento da procura por atendimentos psicológicos e os principais motivos estavam associados a algum tipo de perda experienciado neste contexto – seja a perda de um planejamento de vida ou a perda de um ente querido. “Percebo que a pandemia gerou um trauma coletivo e a partir desse momento teremos que enfrentar um novo problema de saúde pública: o luto”, explicou ela.

Consequências nas crianças e adolescentes

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) alertou, no principal relatório da organização, que este ano está focado em saúde mental de crianças, adolescentes e cuidadores no século 21, que crianças, adolescentes e jovens poderão sentir o impacto da Covid-19 em sua saúde mental e bem-estar por muitos anos. De acordo com o relatório “Situação Mundial da Infância 2021: Na minha mente: promovendo, protegendo e cuidando da saúde mental das crianças”, mesmo antes da Covid-19, crianças, adolescentes e jovens carregavam o fardo das condições de saúde mental sem um investimento significativo para resolvê-los.

"Foram longos, longos 18 meses para todos nós – especialmente para as crianças e adolescentes. Com lockdowns nacionais e restrições de movimento relacionados à pandemia, as meninas e os meninos passaram anos indeléveis de sua vida longe da família, de amigos, das salas de aula, das brincadeiras – elementos-chave da infância", disse a diretora executiva do Unicef, Henrietta Fore, na apresentação do relatório, em outubro deste ano. "O impacto é significativo e é apenas a ponta do iceberg. Mesmo antes da pandemia, muitas crianças estavam sobrecarregadas com o peso de problemas de saúde mental não resolvidos. Muito pouco investimento está sendo feito pelos governos para atender a essas necessidades críticas. Não está sendo dada importância suficiente à relação entre a saúde mental e os resultados futuros na vida", observou Henrietta.

Segundo os últimos dados disponíveis do Unicef, globalmente, pelo menos uma em cada sete crianças foi diretamente afetada por lockdowns, enquanto mais de 1,6 bilhão de crianças sofreram alguma perda relacionada à educação. A ruptura com as rotinas, a educação, a recreação e a preocupação com a renda familiar e com a saúde estão deixando muitos jovens com medo, irritados e preocupados com seu futuro. O Brasil está nos dados do relatório, que mostram que 22% dos adolescentes e jovens de 15 a 24 anos brasileiros entrevistados disseram que, muitas vezes, se sentem deprimidos ou têm pouco interesse em fazer coisas.

Uma adolescente de 15 anos, de Nova Friburgo, que não quis se identificar, passou exatamente por esses sintomas. Ela, que mora com a mãe, profissional da área de saúde, que não parou de trabalhar fora, se viu sozinha, sem ir à escola, sem encontrar com os amigos e familiares. “Nesse período que todo mundo ficou em casa, a gente mudou muito. Durante toda minha vida, eu sempre fui muito rodeada de pessoas. De repente me vi sozinha, dentro do meu quarto, vivendo com meus próprios pensamentos. Repensando atitudes de coisas que não podia mais mudar. Fiquei com esse excesso de passado muito grande, já que não tinha um futuro muito próximo à frente. Na minha cabeça, eu sabia que ficaria muito tempo em casa, sem perspectiva de sair. Eu fiquei muito angustiada, sentia como se eu estivesse à deriva, num mar gigante e boiando, sem sentir nada… nem ruim, nem bom... só existindo…”, relatou ela, que buscou ajuda profissional e foi diagnosticada com ansiedade, depressão e início de um quadro de transtorno alimentar. Medicada e com o retorno ao convívio social, com todos os cuidados de proteção, a adolescente disse que está bem melhor.

A psicóloga Karla Magalhães acredita que as crianças e adolescentes sofrem um impacto ainda maior que os adultos e sem recursos mais maduros para lidarem com isso. “O convívio saudável que fortalece relações sociais, negociações e o lidar-se com frustrações e conflitos é ainda mais prejudicado e pode dar margem a muitos prejuízos. As novas formas de ensino-aprendizagem por meio remoto e as mudanças de rotina também impactam as crianças de uma maneira atroz. As perdas que vêm sendo sofridas por tantos núcleos sociais impactam indiretamente as relações afetivas e familiares de maneira nem sempre elaboradas com o apoio e esteio necessários em tantas experiências de luto, o que, para as crianças, é muito importante também ter-se uma atenção diferenciada,” explicou ela.       

A adolescente entrevistada teve apoio da família e condições de buscar tratamento. Para o Unicef, fatores de proteção, como cuidadores amorosos, ambientes escolares seguros e relacionamentos positivos com colegas, podem ajudar a reduzir o risco de transtornos mentais. Mas, o relatório alerta que barreiras significativas, incluindo estigma e falta de financiamento, estão impedindo que muitas crianças tenham uma saúde mental positiva ou estejam acessando o apoio de que precisam, o que é compartilhado pela psicóloga Karla.

“A saúde mental passou a ser percebida como um grande fator de importância em meio ao caos que tem sido essa pandemia. As pessoas passaram muito recentemente a se perceberem vulneráveis e tendo que admitir a necessidade de se renderem a algo sério que vem modificando a vida de todos no planeta. Em um país como o nosso, em especial, não podemos reduzir esse conceito que envolve questões sociais, geográficas e de interrelações afetivas a somente atendimentos. A promoção de saúde integral passa pela saúde mental também e deve ter um olhar para medidas inespecíficas de uma visão atenta a novos adventos como essa calamidade pública e mudanças importantes decorrentes dela, da mesma forma. Em termos de gestão pública, é certo que não houve atenção adequada a essas questões”, finalizou a psicóloga.

 

LEIA MAIS

Confira a origem da data e a importância do profissional na sociedade

Instituição recebeu medicamentos que deveriam ter sido descartados há dois anos

Ao todo, cerca de 18 imunizantes estarão disponíveis para todas as idades, mas especialmente para as crianças e adolescentes

Publicidade
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Publicidade
Publicidade
Publicidade

Apoie o jornalismo de qualidade

Há 79 anos A VOZ DA SERRA se dedica a buscar e entregar a seus leitores informações atualizadas e confiáveis, ajudando a escrever, dia após dia, a história de Nova Friburgo e região. Por sua alta credibilidade, incansável modernização e independência editorial, A VOZ DA SERRA consagrou-se como incontestável fonte de consulta para historiadores e pesquisadores do cotidiano de nossa cidade, tornando-se referência de jornalismo no interior fluminense, um dos veículos mais respeitados da Região Serrana e líder de mercado.

Assinando A VOZ DA SERRA, você não apenas tem acesso a conteúdo de qualidade, mantendo-se bem informado através de nossas páginas, site e mídias sociais, como ajuda a construir e dar continuidade a essa história.

Assine A Voz da Serra

TAGS: saúde