"​​Eu sou uma surda que ouve"

“Eu sou surda. Só de ouvir essa frase, talvez você já se pergunte: “Como assim, surda, se ela fala tão bem?”
sexta-feira, 08 de novembro de 2024
por Paula Pfeifer
(Foto: Freepik)
(Foto: Freepik)

“Eu sou surda. Só de ouvir essa frase, talvez você já se pergunte: “Como assim, surda, se ela fala tão bem?”. É que graças à medicina e à tecnologia, eu sou uma surda que ouve. Pode parecer coisa de ficção científica, mas não é. Quando as pessoas escutam as palavras “surdez” ou “surdo”, elas automaticamente associam à língua de sinais, intérprete de libras, surdos que não falam. Só que eu e milhões de pessoas no mundo inteiro somos surdos oralizados. Pessoas com algum grau de surdez que falam, que leem lábios e que usam próteses auditivas para voltar ao mundo dos sons.

Eu devia ter uns 6 anos de idade quando percebi um ruído estranho no meu ouvido. O apartamento em que a gente morava, em Santa Maria [RS], tinha um corredor em forma de “S”, onde eu adorava correr. Numa tarde, encostei a cabeça na parede e gritei: “Mãe, tem um apito no meu ouvido!”. A minha memória mais antiga da surdez ainda é nítida, mesmo depois de 35 anos.

Eu lembro do olhar intrigado da minha tia-avó, toda vez que eu repetia a palavrinha mágica das pessoas que não escutam direito: “Hã?”. Pra ela, eu falava “hã?” demais. Ela comentava com a minha mãe e a minha avó que desconfiava que eu não ouvia bem. As duas retrucavam: “Imagina, que bobagem!”. Como eu tinha a voz perfeita, ouvia muita coisa e conversava normalmente, era mais fácil pensar que eu era distraída. E, nos anos 80, não havia toda informação disponível hoje.

Fiz uma audiometria e a fonoaudióloga deixou claro que eu tinha uma perda auditiva, mas minha mãe disse à fono que ela estava enganada. A clássica negação. Quando a surdez se manifesta na infância, nem todos os pais lidam bem com isso. Embora a surdez seja considerada uma urgência quando acomete as crianças, muitas famílias levam anos até buscar reabilitação auditiva, sem saber o quanto estão prejudicando os filhos. 

Fomos a um otorrino que disse que o canal do meu ouvido se abriria conforme eu crescesse, que ficaria tudo bem. Acreditamos nesse diagnóstico errado, e eu fui me virando com leitura labial. Na escola, eu procurava sempre um lugar estratégico para me sentar. Na época, meu ouvido bom era o direito. Então, eu sentava na fileira lateral e encostava a cabeça na parede, pra ter uma visão panorâmica da sala de aula e “ouvir” com os olhos.

A coisa se complicou na adolescência. No segundo ano do ensino médio, eu fiquei muito amiga de uma menina que era surda oralizada. Sua voz era bem diferente, mas dava para entender o que ela falava. Um dia, um colega me perguntou: “Como é que você consegue entender o que ela fala sem som?”. Aquela pergunta me intrigou tanto, que eu cheguei em casa e falei para a minha mãe: “Até hoje aquele canal que o médico disse que ia abrir não abriu. Vamos procurar outro especialista?”. E fomos a outro otorrino. 

Eu tinha 16 anos quando finalmente recebi o diagnóstico certo. Nunca vou esquecer o movimento dos lábios do médico quando ele me falou: “Você tem deficiência auditiva neurossensorial, bilateral, de caráter severo e progressivo”. Como em muitos casos, a minha surdez é de causa desconhecida. Mas a causa não importava muito. O mais difícil era pensar que, em breve, eu precisaria lidar com a chegada do silêncio total. Meu mundo caiu? Não. 

A palavra “deficiência” não fazia parte do meu mundo. Em termos práticos, o diagnóstico não mudou muita coisa no meu dia a dia. Usei poucas vezes o aparelho auditivo caríssimo que a fono recomendou, porque eu tinha vergonha de usar e entrei para o armário da surdez, tentando esconder a minha deficiência até de mim mesma.

Eu me formei no ensino médio e fiquei muito agoniada na hora de escolher uma profissão. Eu tinha vontade de estudar jornalismo ou direito. Mas como, se eu tinha dificuldade para ouvir e para me comunicar? Acabei prestando vestibular para o curso de ciências sociais, mesmo sem vocação, e a escolha estava intimamente ligada ao fato de que esse curso não requeria muita interação humana.

A faculdade me tirou da minha zona de conforto. Eram novos amigos, novos professores, novas vozes e novas bocas pra decifrar. Ganhei fama de antipática, porque eu não respondia quando os colegas me cumprimentavam. Um dia, a professora me chamou e eu não ouvi. Mas eu li os lábios dela dizendo pra classe inteira que eu era mal-educada. Chamei a professora e falei bem alto, pra todo mundo ouvir: “Não respondi porque não escutei. Não sou mal-educada, sou surda”. 

Todo mundo me olhou com os olhos arregalados e a professora corou de vergonha. Depois, alguns colegas me disseram que se sentiam aliviados em saber que eu não era o que parecia. Foi a primeira vez que eu verbalizei alguma coisa a respeito da minha deficiência. Como eu vivia no armário da surdez desde o diagnóstico, eu achava que, se revelasse o meu segredo, as pessoas ficariam horrorizadas ou algo semelhante. E na verdade elas pouco se importaram. 

A partir daí, eu comecei a me assumir como surda e a me interessar pelo tema. No último ano da faculdade, prestei um concurso público. Pela primeira vez, tive que lidar com a palavra “deficiente” no meu dia a dia. Concorri a uma vaga reservada a pessoas com deficiência, no início das cotas para PCDs em concursos públicos, passei e no primeiro dia de trabalho, um colega apresentou os três recém nomeados aos funcionários, dizendo: “Esse aqui é o Giovano, esse é o Cristiano e essa é a deficiente”. Eu nunca tinha ouvido falar na palavra capacitismo, nem sabia o que era. O preconceito estava ali, escancarado. 

Alguns meses depois, um colega começou a questionar a minha teimosia em não usar aparelhos, e ele tinha razão. Dei um basta em todas as desculpas esfarrapadas que contava pra mim mesma tentando justificar porque meus aparelhos estavam na gaveta e não nos meus ouvidos. 

Sair do armário da surdez me tornou mais leve. Eu gastava muita energia fingindo que era uma pessoa que ouvia e fingindo que entendia o que as pessoas falavam. Uma cena clássica da surdez é ficar só sorrindo e concordando numa roda de conversa, sem ter a menor ideia do que estão dizendo. Aí você concorda e reza para que não seja uma pergunta. Assumir a surdez me deu liberdade pra eu falar: “Eu não ouvi, você pode repetir?”. 

Em 2010, decidi criar o site Crônicas da Surdez e passei a escrever sobre os perrengues que eu passava no dia a dia. Era quase uma terapia, porque eu não tinha com quem conversar sobre a minha deficiência auditiva. 

A audiência foi crescendo e um monte de coisas legais aconteceram, entre elas um convite pra fazer a minha primeira palestra num congresso de otorrinolaringologia, em Campos do Jordão [SP]. Depois da palestra, saímos com um grupo de fonoaudiólogas para jantar. Apesar de ser expert em leitura labial desde pequenina, naquele dia, ter que ler o lábio de várias pessoas num ambiente escuro e super barulhento foi impossível. Era a surdez, mais uma vez me afastando das pessoas. 

Decidi investigar se podia fazer um implante coclear, que é um dispositivo de alta tecnologia indicado nos casos de surdez severa ou profunda. Descobri que eu tinha indicação médica para fazer a cirurgia do ouvido biônico. Em 2013, operei o meu ouvido direito, e a partir daí, a minha vida mudou. 

(Foto: Freepik)

O meu sonho era poder escutar uma música e entender a letra sem leitura labial. Algumas semanas após a cirurgia, eu estava sentada na minha cama, sem prestar atenção na TV, e começou a tocar a música de abertura de uma novela. Era “Eu sei que vou te amar”. Quando aquela música entrou pelo meu ouvido e fez sentido, o meu corpo arrepiou. Eu estava ouvindo uma música e entendendo a letra inteirinha pela primeira vez.

Aos 31 anos, eu voltei a ouvir as vozes dos meus amores, minha mãe, minha vó, meu irmão. Voltei a ouvir e a controlar a minha própria voz. Quando ouvi passarinhos pela primeira vez, depois de tantos anos, foi emocionante. O dia em que eu fui até a praia para descobrir se eu tinha voltado a ouvir o mar, que eu amava, e sim, eu tinha, não tenho palavras para descrever o que senti.

Quando voltei a ouvir com o ouvido biônico, pensei: “Bom, agora que eu consigo fazer o que eu quiser, o que que eu quero?”. Por uma sucessão de coincidências, por causa do meu primeiro livro, conheci o meu marido, que é otorrino, especializado em surdez e em implante coclear. Um ano depois, me mudei pro Rio de Janeiro, casei e me tornei madrasta de três crianças.

O foco do meu trabalho, desde então, é a criação de conteúdo sobre surdez e tecnologias auditivas. Criei uma comunidade que hoje tem 22 mil membros. Em 2018, venci um programa global de liderança do Facebook como residente da América Latina. Foram mais de 6.500 inscritos no mundo inteiro. Esse programa nos deu acesso a um fundo de 1 milhão de dólares pra criar e executar um projeto em prol da nossa comunidade. 

O projeto se chamou Surdos que Ouvem e foi um sucesso. Milhões de pessoas assistiram a nossa campanha em vídeo, milhares participaram dos nossos eventos. E incontáveis pessoas passaram a usar aparelhos auditivos ou fizeram implante coclear depois de conhecer o nosso trabalho.

Quando comecei a compartilhar as minhas dores e conquistas, entendi o poder da autoaceitação, o poder de vencer o medo na direção da mudança. E, com essa mudança, entendi que podia inspirar muitas pessoas a escutarem o barulho de dentro e mudarem as suas próprias vidas.

(Fonte: Portal Plenae)

 

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