Fluxos da vida

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Ao ler o livro de contos “Café com broa: histórias de um mascate”, escrito com beleza literária por Tânia Theophilo, encontrei interessantes metáforas. Por que o passado não volta? Quem não guarda essa vontade nos segredos dos sonhos? A vida é cheia de sutilezas não percebidas a olhos vistos.

No conto, “A blusa e o homem do rio”, a personagem, uma jovem bonita e corpulenta, lavadeira de margem de rio, profissão que herdou da mãe, deixa uma camisa masculina, que ganhara de um mascate, cair de suas mãos e ser levada pelas águas. Tempos depois ela revê a camisa num homem alto e belo, de olhos e pele negra, a quem se entrega sem incertezas. De um modo metafórico e delicado, Tânia nos mostra que o fluxo do destino é como o movimento das ondas do mar: o que as águas levam, trazem de volta, mas com cores e formas diferentes.

Volta e meia me recordo do dia em que acordei com seis anos, querendo ser mulher. Na época não tinha noção do ser mulher, apenas admirava a postura, os saltos de sapato alto, coisas assim do jeito feminino. Naquele despertar queria sê-la num passe de mágica, sem passar por todos os processos e etapas do crescimento. Não sei por que motivos guardei aquela vontade até hoje, mais de 60 anos depois. E, agora, de modo diferente, ou melhor, atualizado, penso em quantos dias ainda tenho para viver e como vou vivê-los.

Continuo a escrever a linha do tempo com imensa vontade de prolongar meus jovens anos para eternizar minha existência, mesmo sabendo que a finitude é regra geral. Aos seis anos queria conquistar o adolescer, o amadurecer. Hoje quero viver meu futuro com vitalidade e experiência que os 70 anos me deram.

Somos como as lavadeiras das margens de rio: sempre deixamos as roupas escapulirem das nossas mãos, fazendo com que o destino cuide delas e nos traga de outras maneiras. Tive pessoas que tanto amei e se afastaram por causas diversas, mas foram substituídas por outras a quem dediquei afetos profundos. Dei para meus filhos o que recebi da minha mãe, dos meus tios e avós. Papai viajou cedo para o universo, mas foi substituído por homens doces, que me acolheram como filha, sobrinha e neta. Eis que fui generosamente embalada pelo destino que não permitiu que o desamparo da figura paterna me deixasse piores hiatos.

Os lugares onde morei e tive de deixar foram substituídos por outras moradias das quais cuidei com amor. Há 50 anos durmo na mesma cama, apesar de ter trocado de colchão algumas vezes. Ainda não precisei dela me desfazer, porém sei que quando isso acontecer vou me revirar bastante antes de dormir. Por sorte, escrevo este texto, fazendo uma suave terapia de desapego.

O grande aprendizado de que precisamos ter, talvez mais importante até que um curso universitário denso, é não ficar desapaixonado pela vida ante as ausências das pequenas e grandes coisas. Muito menos deixar que o medo de perder seja um escudo que nos impeça de experimentar com plenitude o que o destino nos apresenta.

Finalizo o texto cantarolando “Como uma onda”, gravada por Lulu Santos, que diz que “nada do que foi será do jeito que já foi um dia, pois tudo passa, sempre passará”. Assim como as roupas que o rio leva, os velhos colchões e os acertos e descaminhos em nossas vidas. 

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Tereza Cristina Malcher Campitelli

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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