“É comum sair de uma aula online extenuado e sem o resultado desejado”

Professores em home-office relatam volume de trabalho excessivo, constrangimento e assédios. Saiba como é a rotina dos educadores durante a pandemia
terça-feira, 06 de julho de 2021
por Guilherme Alt (guilherme@avozdaserra.com.br)
A professora de matemática Amanda Faria
A professora de matemática Amanda Faria

Cuidar de alguém sempre fez parte da rotina de todo ser humano. Quando nascemos somos cuidados, quando ficamos adultos, cuidamos e quando envelhecemos, somos cuidados, outra vez. Muitas são as profissões destinadas a cuidar: médicos, enfermeiros, domésticas e profissionais da educação. E é deste último que a reportagem vai abordar.

Educar é a tarefa principal dos pais, mas levar conhecimentos gerais e aprimorar a forma de pensar é função do professor. A pandemia trouxe à luz a dura realidade enfrentada pelas instituições de ensino, mesmo as particulares. A necessidade de readaptar, aprender a lidar e dominar uma nova tecnologia em tempo recorde ocupou muito espaço na rotina de um professor.

A VOZ DA SERRA ouviu três profissionais que atuam nas esferas públicas e privadas de ensino. Os três garantem que, em nenhum momento, a classe parou de trabalhar. Na realidade, segundo eles, o trabalho que já era grande ficou ainda maior, com sérias violações no âmbito profissional e invasão de privacidade. O home-office trouxe desafios e problemas desconhecidos que somente quem frequenta o ambiente escolar pode entender.

Rômulo Figueira (acima) é professor de História e Geografia das redes públicas e privadas e, atualmente, se divide entre o ensino híbrido e o presencial. O professor tem a responsabilidade de gerir quase 20 turmas, cada uma com uma média de 35 alunos. Sob sua responsabilidade estão cerca de 700 estudantes. “Os professores não pararam de trabalhar. Foi um período de adaptação muito difícil”, afirmou o educador. Segundo Rômulo, aos professores era exigido que as aulas fossem gravadas em vídeo, tivessem materiais digitais diversos, uma série de necessidades que por muitas vezes os profissionais não tinham contato. “Muitos, inclusive, moram em regiões sem internet adequada”, observa.

A professora de matemática Amanda Faria leciona no Centro de Educação de Jovens e Adultos (Ceja). Com um sistema de educação à distância que permite o contato presencial e virtual, a educadora achou que o home-office poderia ser mais tranquilo, por conta da familiaridade do modelo, mas admitiu que sentiu e ainda sente dificuldades. “Nós professores percebemos que éramos conhecedores superficiais pois a plataforma deixou de ser uma ferramenta e passou a ser instrumento único e principal do processo ensino-aprendizagem. Fizemos cursos de reciclagem, montamos novas provas e até hoje, enfrentamos situações novas, cada dia um novo desafio”, conta. 

Atualmente de licença, o professor de História Manoel Espedito (acima) alerta que a situação dos educadores não têm precedentes. “Fomos impactados primeiro pelas dúvidas e medos diante de uma doença desconhecida. Segundo, sem uma discussão mais aprofundada e uma estrutura necessária nas redes, fomos impelidos para o ‘olho do furacão’. Nada substitui o encontro olho no olho e a fundamental relação dialógica aluno/professor e do aluno/aluno”, destaca Espedito.

Dificuldade na preparação das aulas

Preparar uma aula ficou mais difícil, relatam os educadores. “Agora, eu tenho que procurar tutoriais e auxílios tecnológicos, é preciso mais tempo para preparar esse material, seja com slides, mapa, um esquema de resumo. Também é preciso preparar a gravação, finalizar o vídeo e levar para a plataforma. Além de manter a rotina de estudo e preparação, é preciso compreender que os alunos são diferentes e o tempo de aprendizado é diferente. Tem aluno que aprende mais no visual, outro na leitura. Temos que preparar materiais extras. Isso tudo em um dia não dá tempo. Não há organização e rotina de horários”, se queixa Rômulo.

Espedito precisou criar um canal no YouTube. As queixas são as mesmas de Rômulo quanto ao tempo demorado para a gravação das aulas. “Sem contar que você tem que procurar parceiros para uma edição minimamente aceitável. Não estamos preparados para utilizar toda essa parafernalha tecnológica”, contata o educador. Além disso, segundo ele, os desdobramentos de um planejamento são quebrados porque a própria avaliação fica reduzida e individualizada. “O trabalho do professor é maior e mais desgastante na medida que precisa atender as demandas dos alunos quase que em tempo integral junto às solicitações do órgão mantenedor que não abre mão de um pseudo controle. Tentamos colocar limites, mas a dinâmica do nosso trabalho não nos permite desligar. É quase sempre tentativa e erro, que (nos) leva a exaustão e acaba interferindo no resultado e rendimento do aluno e do professor. É comum sair de uma aula online extenuado, sem o resultado desejado e necessário.”, lamentou.

Pressão psicológica durante home-office

“Esse “reinventar” quase sempre significa desempenhar funções que não são suas, em horário bastante estendido”, reclamou Rômulo. Segundo ele, houve uma confusão de horários que permitiu a alunos, pais e gestores acionarem os professores a todo momento. “Com nosso contato pessoal em mãos, passamos a estar inteiramente disponíveis”

Segundo Espedito, o professor é aquele que nunca “fecha a porta” e exerce seu ofício 24 horas por dia. Ainda de acordo com ele, houve educador que chegou a ficar doente. “A pandemia potencializou isso. São tantas as demandas que adoecemos no afã de conseguir dar conta das tarefas já instauradas, das novas que foram impostas pela situação pandêmica e pela insensibilidade de muitos gestores. Muitos sofrem com os mais diversos tipos de assédios e enfrentam uma visão que criminaliza a educação e o ofício do professor”, relatou.

Constrangimento durante as aulas online

“Teve uma avalanche de problemas”, denunciou Rômulo. “Pais assistindo as aulas junto com os filhos, interrompendo e questionando o professor, ou seja, não respeitando nem a autonomia do próprio filho. Era muito constrangedor. Muitos defendiam que o bom senso iria prevalecer e não aconteceu”, observa. O educador relatou ainda que durante o home-office, professores foram ameaçados de perder o emprego. “Na rede privada houve muito assédio no sentido de ameaçar o emprego e os professores ficaram constrangidos. Tiveram sua privacidade invadida e sua autonomia questionada. Recebemos mensagens extremamente inapropriadas de pais fora de horários convencionais. Por medo, esses professores se calaram. Na rede pública houve o discurso de que os professores tinham que estar prontos para amparar os alunos em todos os sentidos e isso levou a horas excessivas no trabalho, retorno precipitado e a convocação de professores sem ter aluno no espaço físico”, revelou. 

Agravamento do abismo educacional

Os educadores relatam que as escolas particulares - mesmo as mais estruturadas - tiveram dificuldades nessa adaptação, mas as escolas públicas sofreram muito mais. “Não se levou em consideração a disparidade de acesso à tecnologia dos estudantes e do professor. É manifesto o sucateamento da carreira e as péssimas condições salariais dos profissionais. Os governos falharam por não envolver os principais agentes no debate educacional”, alertou Espedito.

Ensino híbrido gerou mais trabalho 

Ainda de acordo com Rômulo, o que era ruim, ficou pior. Isso porque com a volta das aulas presenciais no modelo híbrido, o volume de trabalho aumentou ainda mais. “O professor precisa fazer dois modelos que atendam ao aluno que está presencialmente e o que está em casa. O  ensino híbrido, da forma que está sendo aplicado, é mais nocivo em termos didáticos do que o ensino remoto, até que as condições sanitárias sejam reestabelecidas”, alertou.

A percepção dos professores é a de que muitas famílias estavam ansiosas pelo retorno ao modo presencial, mas atualmente repensam essa decisão. “O colégio não é depósito de criança. Vejo que famílias com condição social inferior têm uma visão muito mais coerente com a realidade do que famílias com condições de vida melhores”, diz Rômulo. “Na última semana fomos surpreendidos por uma determinação de retorno às aulas presenciais na escola, mesmo para o grupo de profissionais com menos de 60 anos, sem comorbidades. Sendo que esse grupo recebeu apenas uma dose da vacina, ou seja, não estão imunizados completamente”, alertou a professora Amanda. 

Professores querem retornar, mas mortes preocupam

“O fato de termos ainda pessoas que insistem em pensar que os professores não querem retornar ao trabalho, possivelmente são pessoas que nunca pisaram em escolas públicas. Assusta bastante”, lamentou Rômulo. “Não há nenhum professor se negando ao retorno presencial, pelo contrário'', continuou o educador. “É preciso retornar o mais rápido possível, dentro da segurança. Foi uma grande vitória garantir a imunização dos profissionais de educação”, comemorou.

Até a última semana, segundo Rômulo, oito profissionais da educação perderam a vida para a Covid-19 e ainda há dois óbitos suspeitos, após a volta às aulas presenciais. “Não existe protocolo seguro. Na última semana perdemos um educador na faixa dos 30 anos. Não há como precisar que a contaminação foi nas escolas. Mas muitos relatam que o trajeto até as unidades e a casa é um facilitador para contrair o vírus”, diz Rômulo. 

Espedito listou as condições que considera ideiais para um retorno presencial seguro: “vacinação para todos, reestruturação que possibilite turmas menores, espaços arejados, projetos que coloquem no centro a questão de cuidados com a saúde e higienização, valorização do professor e dos profissionais que atuam nos espaços escolares, maior integração com as outras áreas da administração, principalmente a saúde”.

 

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TAGS: Educação