Saudades da cidade lá fora

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 13 de março de 2021

Um silêncio ensurdecedor domina os cômodos da casa. Uma mensagem chega no celular quebrando a monotonia dessa música de uma nota só. Mais uma daquelas propagandas que tentam te convencer de que você foi sorteado para comprar. Vê se pode? Sorteado para gastar... 

Ainda que seja especial estar sobrevivendo, não há nada de incrível em estar no cadastro do invasivo telemarketing. Será que eles acreditam que esse tipo de propaganda rende negócio? Talvez, dê certo. Comigo, não. Silencio o aparelho que me conecta a tudo lá fora e apenas espio a fortaleza de escuridão embrutecida pelas cortinas blecaute. 

Durmo para ver se o sono vem. Canto para despertar. Estou com saudades da cidade lá fora. Da chapa fritando. A frigideira daqui de casa não é igual. Dizem que servir às multidões é o tempero que faz o alimento na chapa ser mais gostoso. O gosto do bacon no sanduíche que não continha bacon, a gordura do provolone na muçarela. 

Enquanto sonho, estou lá fora, brincando com as crianças no parquinho, correndo dos quero-queros no gramado. Mas logo acordo e me sinto passarinho na gaiola. Eu, passarinho. A casa, gaiola. 

Saudades da cidade lá fora... As flores dos canteiros da praça. Vislumbro. Mesmo que há tempos naquela grande praça só exista eucaliptos renascendo. As plantas daqui de dentro de casa não gostam muito de luz. Plantas que ficam na sala são assim. Pouca ou muita água, mas nada ou quase nada de luz do sol. São belas, ainda que não deem flores. Ah! As lá de fora são mais libertárias. Ainda que, quando na varanda particular, deem mais trabalho para cuidar. Ficam expostas, são sensíveis e requerem muita atenção, pois não aprenderam a se virar sozinhas como as que estão no habitat natural. Assim como as flores da cidade lá fora, são os vira-latas. 

Cachorros ou gatos. Sabem pedir, graduados em sonsice, não resistem a um carinho qualquer. Mas logo dispersam e se vão como cão sem dono mesmo. Saudades deles, especialmente do Branquinho e do Pretinho. São os nomes deles. E em outras ruas há o Amarelinho ou o Miauzinho. Nomes ou apelidos, mas que atendem prontamente ao serem chamados. Não sei se eles são os donos da cidade ou se a cidade é que é dona deles. Para que saber de algo tão resolvido por si só? 

O barulho da cidade só me achega quando a moto barulhenta atravessa a rua perto ao meu prédio. Corta o silêncio e treme a gaiola fechada em que meu canto é ruído tímido e desolador. Desesperador é sentir que isso não acaba esse ano e que talvez não acabe tão cedo. Minha saudade da cidade lá fora caminha para nostalgia. Como as que tenho dos tempos que não vivi ao colocar um vinil do Belchior na vitrola moderna. 

Toca CD, Cassete, entrada USB e tem até bluetooth. Fico com o LP. Com a agulha fina que desliza pelas faixas que se traduzem em som límpido. Como se produziu maravilhas artísticas nos anos de chumbo. O que se produzirá de arte nesses tempos inglórios e tão cruéis? O que me cabe é, por agora, imaginar Daíra cantando Paralelas no Corsário, como se o extinto Corsário fosse a minha sala e eu ainda que na gaiola pudesse viajar como se estivesse no meu carro a cem por hora. Não escapo da gaiola, mas corro por ela e por suas poucas janelas, e então, sofrido, destemido, ao mesmo tempo que esperançoso, revigoro ao sentenciar a mim mesmo que o infinito da cidade sou eu... 

Que não seja infinita essa saudade.      

 

Foto da galeria
(Foto: Henrique Pinheiro)
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