Todas Marias

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 09 de março de 2024

Minha mãe era costureira, minha tia mais nova balconista. Minha avó era do campo, minha tia mais velha doméstica. Todas mães. Todas Marias. 

De onde elas vieram era tradição: homens com o primeiro nome José, mulheres precedidas de Maria. E assim minha avó fez com cada um dos seus sete filhos, três mulheres e quatro homens, sendo que a primogênita recebeu o nome composto de Maria José e o primeiro filho homem recebeu o nome de José Maria. 

Vovó era filha de sinhá. Quase centenária (faltou pouco para chegar aos cem), nasceu no final dos anos 20 do século passado, mas tinha ainda a marca dos resquícios escravocratas. Não conheci Dona Sinhá, como mamãe a chamava. Comentavam, minha mãe e meus tios, que quando a vara comia, todas as crianças iam para a proteção de sua saia. Nem sei o nome dela. Sinhá era sua função na grande fazenda que foi totalmente dividida ao fim do ciclo do café da região de Trajano de Moraes. Pelas histórias que ouvi, era uma mulher bondosa e igualmente perspicaz.

A pobreza era o retrato daquela época. Vovó viveu quase que a vida inteira em uma casa de pau a pique. O fogão de lenha e quando caía a noite se usava por tempo exíguo a lamparina de querosene. Ninguém nunca passou fome, mas quando se avistava, a solução era água de fubá com talos de bananeira. O sonho de todos era sair dali o mais rápido possível. Tentar uma vida melhor. Nova Friburgo era o paraíso. 

Naqueles tempos, o ônibus para Serra das Almas nem era diário. Quando vovó ia para Friburgo, o imaginário infantil era de que Dona Mulatinha estava indo para o céu ou além dele. Mamãe contava que até uns 12 anos acreditava que Nova Friburgo ficava mesmo no céu. Ela veio para cá por volta dos 17 e aqui ficou até a sua prematura morte aos 52. 

Friburguense, eu tinha medo de ir visitar minha avó só pelo nome do seu lugar, Serra das Almas. Assim como minha mãe imaginava que Nova Friburgo estava no céu, eu achava que lá era serra de almas que vagavam e sempre tive pavor de fantasmas. Mas ia, porque tinha minha mãe e minha avó para me proteger. Diziam: “Dinho, você tem que saber que gente morta não faz mal, você tem que ter medo é de gente viva”. 

Sim, meu apelido era Dinho. Até o fim da vida, minha avó me chamava só de Dinho. Como Wanderson era difícil para ela pronunciar, resumiu para Andinho, logo Dinho para facilitar. Mas isso é outra história…         

Mamãe, vovó, titias… Mulheres de amor, mulheres de fibra. No vigor, as suas sinas. Porque assim a vida as fez: determinadas, independentes, impetuosas para defender suas crias. Mulheres de peito, trabalhadoras, vibrantes, aguerridas. Os dias a provocaram a não baixar a cabeça. Mães exemplares com esse tal de amor incondicional que tudo faz e nada espera. Mulheres na essência de fazer acontecer, contra tudo e contra todos, até a sociedade. Mulheres que sabiam dividir o pouco e do pouco faziam muito. Mulheres… 

Com elas, aprendi a sensibilidade, mas também a firmeza, a vontade de ir e buscar, o dom de proteger, mas também a coragem de enfrentar. Orgulho de ser filho de costureira e de ter como heróis mulheres — heroínas. E sei que não é um privilégio meu, pois há tantos que aprendem esses e outros valores com mulheres. Porque a mulher tem esse talento de tocar o mundo e fazê-lo melhor. 

É mais do que algo de gênero, é mais do que maternidade, é muito mais do que receber o nome de Maria, Ana ou Aline. É mais do que essa tentativa que acaba como mero pleonasmo ao associar mulher a amor, fibra, vigor, determinação, ímpeto…   

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