O ano que nunca começou ou sequer existiu

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 20 de junho de 2020

E assim ficarão marcados nas nossas memórias esses dias: 2019 é o ano que nunca terminou. 2020 é o ano que nunca existiu. 2019 não acabou mesmo ou é 2020 que ainda nem começou?

No Brasil, se o ano só começa depois do carnaval, então tivemos um ano realmente muito curto. Nos causa estranheza não celebrar os feriadões como a Sexta Santa ou o Corpus Christi. E as férias de julho? Para que férias em julho se mal saímos das férias de janeiro? 

Se 2019 não deixou saudades para a coletividade, 2020 nem deu para deixar esse gostinho. Um ano esquisito, mas mesmo que seja lembrado como um ano que não existiu ou que começou tarde, ninguém ousará dizer que não foi um tempo que nos sacudiu. 

Fazer pensar não era para ser um sacode... O tempo aguça nossas intuições, mas meio que distraídos deixamos a brisa levar os ponteiros do relógio, até que a brisa vira furacão. Os alarmes soam, mas ainda assim nos deixamos levar, como se esses alertas não fossem comigo e com você. São para ele... Até que, o que precisa ser feito - muitas das vezes simplesmente repensar - se torna urgente. 

A urgência é sempre mais cara, mais pavorosa e inevitavelmente nos causa medo. Há quem defenda que o medo nos faz agir. Eu, sinceramente, acho que o medo deveria ser banido. É um sujeito imprestável que gosta de causar aflição. Não fomos feitos para sermos aflitos. Nossa natureza é corajosa, libertária, vulnerável. Coragem e liberdade não combinam com o medo, mesmo quando vistas como antônimas a ele. Já a vulnerabilidade não é uma exclusividade do medo, é da vida. Como um todo.

Apreciar a vida vivendo é melhor do que só observar, ainda que a observação sincera evite erros e a repetição de erros. Está na moda, não sei se é coisa de coaching, a tal da abordagem sobre autosabotagem. É a tal da contemporaneidade tão démodé. É como aquela equivocada escolha do novo que pode ser até diferente do velho - no rosto - mas é tão evidente ser mais do mesmo ou ainda pior. 

Heróis e vilões estão aí aos montes. Se você se olhar no espelho vai ver inúmeros heróis e vilões saltando de seus cabelos, pelos ombros, pelo peito... Não é do cotovelo do outro não. É do seu umbigo mesmo. Mas a gente tem uma certa mania de sempre querer ser o mocinho. Autoengano. Nossas escolhas individuais constroem monstros que mastigam a humanidade. Até a nossa própria humanidade.

É preciso estar atento. 2020 começou sim. Vai acabar, como 2019 acabou. Espero que não acabemos nele. Só vale se for para se acabar  dele como nos acabamos nos blocos de carnaval. Se bem que o carnaval até existiu mesmo... Espero que você tenha se acabado ao seu jeito. 

Mas é preciso estar atento ao objetivo de estar aqui. Não! Não se trata de ser escolhido ou abençoado. Todos, absolutamente todos, na sua natureza corajosa, libertária e vulnerável precisam compreender que há um objetivo para estar aqui: ser feliz e cuidar para que o outro também seja feliz, sem ninguém atrapalhando ninguém. Um cuidando do outro sem querer determinar o que o outro deve escolher ou se satisfazer. Como diria minha avó: “se cada um cuidasse do seu próprio rabo...”. 

Mais atual mesmo é o que um amigo meu cravou numa dessas discussões espúrias sobre orientação sexual. Ao ser indagado de forma áspera sobre quem orienta a sexualidade, respondeu sem ironia mesmo: “quem orienta é o ‘c...’!

Já confiei de que seremos mais empáticos depois que 2019 acabar ou 2020 começar. Também já me desanimei desapontado com a forma como lidamos com esse ano que nunca existiu. No fim, prefiro mesmo é ficar com a pureza da resposta das crianças de que a vida é bonita, é bonita e é bonita.

 

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