Exceção e princípio

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 08 de maio de 2021
Foto de capa
(Foto: Freepik)

Otimista por natureza, acreditei que nos tornaríamos mais humanos com todo esse impacto que nos causa a pandemia. Observador por experiência, evidencia-se que não. Não melhoramos nada. Quiçá, pioramos. Nós, seres humanos, evoluímos constantemente, e, creio nisso. Mas evoluímos tão lentamente quanto o Big Bang. 

Chego a me perguntar se nós, seres humanos, somos realmente bons. Será que nossa evolução nos leva a ser mais egoístas? Será que nosso gene é esse? Será que esses impactos que aceleram formas de ver e viver a vida nos tornam ainda mais individualistas? 

Não sei se é melhor ter as respostas ou se é mais adequado sequer fazer tais perguntas. Estamos perdendo como cidade, como sociedade, como humanidade, como mundo. E, não estamos perdendo para o vírus que nos assola e nos mata. Estamos perdendo por nós mesmos e para nós mesmos. 

Imagine um grande pano branco com um ponto preto. Você vai perceber muito mais aquele ponto escuro do que todo o branco em volta. Assim, o mal (exceção) sempre é destaque em meio a toda bondade existente. 

Tenho tentado mais do que nunca enxergar dessa forma. Praticar a vida percebendo todo o bem que existe, sem ignorar o mal, mas também sem permitir que ele seja o destaque de tudo. Mas nesses tempos tão reveladores, de tanta insanidade coletiva, já começo a ver invertido: o bem como exceção e esse ponto mínimo envolto pela negação em um mar de aberração. Onde foi que nos perdemos?

Naturalizamos a morte. Elegemos os vilões errados e damos título de herói à psicopatia pagã travestida de Messias. Invertemos valores e usamos as religiões para desenhar um Cristo que jamais estaria fazendo arminha com a mão. Sobra religiosidade preconceituosa e intercessores manipuladores que dizem ter mais poder para falar com Deus. Falta espiritualidade. 

No modismo da disputa de narrativas e verdades, a maior mentira é a de que sobreviver é o bastante, de que estamos aqui para sofrer, enquanto uns esbanjam. Pais das desigualdades fazendo bilhões de filhos da desumanidade. Diz o menino que tem fome: “E ainda querem me chamar de humanidade?”

Eu não quero exagerar, ainda que esteja exagerada a minha sensibilidade que chora ao ver a flor crescer no pequeno jardim da minha janela. Queria que todos pudessem ter uma janela para chamar de sua. 

Observo e experimento a empatia, ainda que eu jamais saiba a dor que o outro sente. No rosto esgotado da técnica em enfermagem me surpreendo e vendo um conjunto delas no hospital desestruturado torno a perceber que o mal é exceção. 

Minha natureza otimista prefere não olhar para as ruas lá de fora. Mas, se me distraio, relativizo que talvez só seja ânsia por uma normalidade demorada em demasia a nos brindar de novo. Inspirações não faltam para nos reinventarmos como humanidade. 

Não quero e não podemos perder a esperança. 

É música o som das palmas para quem sai de um hospital após dias de luta contra a Covid-19. É canção triste o silêncio que se faz na UTI por aquele corpo que não cantará mais. Em meio aos números – vidas perdidas afetando outras tantas vidas que terão dificuldades de encontrar sentido. Estamos nas últimas como humanidade. 

Não adianta gritar por salvação, pedir por milagres. Basta falar bem baixo, para si mesmo, para se ouvir: a salvação está dentro. Dentro de nós mesmos. Lamento não bastar a cada um de si mesmo. Depende de cada um de nós, da união de tantos de cada um de nós. Somos a humanidade cujo bem é princípio e não exceção.  

 

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