Simplicidade e sensibilidade

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Em 2003, fui convidada por Mônica Alvarenga, diretora de teatro, a adaptar, juntamente com ela, a lenda da mitologia indiana, “Cabeças Trocadas”, reescrita pelo autor alemão Thomas Mann. A lenda conta a história do triângulo amoroso entre Sita, a bela das cadeiras, e dois inseparáveis amigos: Shiridaman, descendente dos brâmanes, espiritualizado e versado nos Vedas, estudioso e conhecedor do ser humano; e Nanda, ferreiro e pastor de gado, trabalhador da terra, com belo e vigoroso corpo físico, semblante risonho e não se envolvia com assuntos intelectualizados. Ambos se apaixonam por Sita.  O conflito cresce de tal modo que somente a deusa Kali consegue uma solução, e o final é surpreendente.

O que me motiva a trazer esta lenda ao jornal é a maneira de ser de Nanda. Não há dúvidas que a beleza do corpo físico sempre é um fator atraente aos olhos de um observador. Mas é a naturalidade dos sentimentos, a transparência das emoções, a simplicidade e a sensibilidade com que a vida é experimentada que me encantam. A narrativa mostra não ser necessário o conhecimento da filosofia, astronomia, a geometria ou dominar a gramática para lidar com o mundo e as coisas da vida. Nanda adquiriu o conhecimento de tudo o que precisava para viver bem e sobreviver às intempéries da natureza, lidar com as características das pessoas que o cercavam e ter boa vontade para colaborar, saberes que adquiriu na experiência diária. Um personagem sem espertezas nem segundas intenções, porém carregado de jovialidade e ingenuidade. Como estudei o texto com profundidade, concluí que quanto mais adquirimos conhecimentos, mais exigente ficamos com as circunstâncias e menos percebemos a simplicidade com que as situações se apresentam. Podemos, inclusive, deixar de notar questões relevantes que acabam passando despercebidas.

“Porque a poesia é a tolice que corre atrás da inteligência. Preciso dizer que vós, os inteligentes, complicais as coisas para pessoas como nós. A gente pensa que deve tornar-se inteligente, mas antes de consegui-lo, descobre que é melhor ficar novamente tolo.”

Na época em que estava fazendo a adaptação do texto, um amigo veio nos visitar e fiz alguns comentários a respeito. Ele me apontou para um canto do jardim e disse: “Olha aquela árvore, tem tanta vida que você nem imagina. Todas as vidas estão interagindo, cada ser produzindo a própria sobrevivência e de todos, há disputas e amor, há colaboração e superação. Há nascimentos e mortes. Quantas lutas uma borboleta teve para chegar à vida adulta, procriar e logo depois morrer? Temos o universo sob nossos olhos e não conseguimos percebê-lo em sua grandiosidade. Amanhã, se voltar a observar seu jardim, vai perceber folhas amareladas caídas no chão, formigas comendo novas folhas e usando outros caminhos para levá-las ao formigueiro. Haverá uma rama nascendo em algum lugar e vai escutar um piar de filhote de passarinho”.

Tenho uma amiga, Carla, que me lembra Nanda. Estive com ela neste final de semana e senti vontade de observá-la, escutá-la. Torná-la minha mestra para melhor perceber a simplicidade das coisas e aprimorar meu entendimento sobre a generosidade vida.

“A beleza da alma se traduz na simplicidade de ser”.

                                  Jairo Backes

 

“Ser feliz é uma responsabilidade muito grande. Pouca gente tem coragem”.

                        Clarice Lispector

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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