Somos feras entre feras

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

terça-feira, 02 de maio de 2023

No Clube de Leitura Vivências, estamos lendo “Cartas Sem resposta”, organizado por Ninfa Parreiras. No livro, várias pessoas escrevem cartas a escritores eternamente presentes entre nós, que, no entanto, já partiram para algum lugar do universo. É uma coletânea que emana da sensibilidade de quem escreve para o autor por quem tem admiração. Poderiam ser cartas sem respostas, mas penso que não são. Quem as tem nas mãos, como eu, sente a forte presença dos escritores destinatários.

Tive, pois, na dinâmica da leitura, a incumbência de falar ao grupo sobre o poeta Augusto dos Anjos (1884-1914) e, ao longo da pesquisa, fui me deparando com sentimentos sombrios, com uma voz triste, que se tornou singular na literatura brasileira.

O poeta da tristeza e do assombro termina o poema “O Vencedor” com o verso “Que ninguém doma o coração de um poeta!”  Seus sentimentos incontroláveis o consagraram como uma expressão relevante na literatura brasileira nos tempos do pré-modernismo. A força da sua poesia mostra suas impressões sobre a vida, a desesperança e a morte; cada um dos seus versos foi escrito com vigor. Mesmo suas poesias estando reunidas em um só livro, ”EU”, faz dele um dos poetas brasileiros mais lidos.  

 

VERSOS ÍNTIMOS

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera

Somente a ingratidão – esta pantera

Foi tua companheira inseparável!

 

Acostuma-te à lama que te espera

O homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.

 

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que te afaga é a mesma que te apedreja.

 

Se alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!

 

Essa sua mais famosa poesia me faz externar sensações sobre os acontecimentos que me cercam porque, com a infelicidade que cabe no meu coração, concluo que seus versos estão por toda a parte e atropelam o costume que tenho de enaltecer a beleza nas pessoas e nos fatos. É terrível acatar a perversa rudeza que nos cerca. Augusto dos Anjos, por loucura ou coragem, colocou seus dedos nas feridas que trazemos na alma. É bom vê-las e aceitá-las porque melhor podemos refletir sobre os modos como é possível agir. 

Quem não se angustia?! A melancolia nos toma quando não conseguimos reagir a situações que nos ameaçam, ferem ou limitam, às vezes sem timidez, causando-nos desencantos. É um estado desagradavelmente perturbador, tão bem colocado na poesia de Augusto dos Anjos. 

A literatura traz o reflexo das emoções do escritor. Como ele se esforça para conhecer a essência das coisas! Contudo jamais o conseguirá. De modo solitário, o autor a evidencia de forma particular em suas palavras. 

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo

O amor na humanidade é uma mentira

(Idealismo, Augusto dos Anjos)

Ufa! Agora só me resta ir para a cozinha e preparar uma omelete recheada com mel.

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Tereza Cristina Malcher Campitelli

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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