A parte mais íntima e ínfima do quarto

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 18 de março de 2024

Nunca havia percebido que sou a parte mais íntima e ínfima do meu quarto. É interessante a pessoa se ver assim, posto que é empurrada do altar soberano, em que é o ponto de partida de tudo. Marcel Proust, em “Em busca do tempo perdido” me dá as mãos e me conduz à minha cama para que eu possa me ver desta maneira, misturada.

Quem duvida que a noite tem mistérios? Nem gosto de pensar a respeito. O quarto silencioso, escuro ou à meia luz, faz com que minhas histórias de vida, temores e prazeres, ideias e divagações se misturem com os objetos e móveis. Todos meus. É o mais generoso momento de pertencimento. Talvez seja essa sensação que mais me assusta uma vez que nela possa encontrar fatos secretos e clandestinos. 

O cheiro dos tapetes, da cama, da mesinha de cabeceira, das roupas penduradas e dobradas no armário, dos meus trecos e cacarecos, objetos dispostos em diferentes locais, organizados ou não, se confundem com os dos meus pensamentos, agitos e dos medos. Meu quarto e eu temos um perfume de gente viva.    

O relógio tiquetaqueia suavemente os segundos, som que se aproxima e toca o barulho da minha respiração. O quarto tem minha voz noturna. O meu canto de sereia. 

Durante a vigília, o contorno e a sombra dos móveis enfeitam os espaços vazios, invisivelmente preenchidos com o meu eu de agora e com o de antes e de um ontem remoto. São imagens imaginadas que dançam a valsa das estrelas. Sou, pouco a pouco, cercada de lembranças que chamam o sono e os sonhos.

Entre as paredes do quarto, eu e tudo o que lá existe parece que giram num caleidoscópio. Sou uma das figuras que se faz e desfaz, e ganha uma enormidade de formas e cores; nunca se evidencia.

Da mesma forma que o calor do meu corpo aquece a cama e tudo que está presente, é também aquecido pelos objetos e móveis. O quarto é um lugar sagrado e não pode ser violado por ninguém. É onde me sinto plenamente e me reconheço. No meu quarto o mundo exterior é um redor, é longínquo e tem de sê-lo. É nessa intimidade que me preparo para enfrentá-lo. Dentro do meu quarto não há batalhas; só pensamentos e sensações. Lá, a rainha de Sabá, soberana do mais poderoso reino, me inspira. Mas no exterior dele, posto que sim, a inabalável serva de Naamã me ilumina. 

P.S: A serva de Naamâ era uma cativa israelita que servia na casa de um comandante sírio. Afastada da sua terra natal, ela teve conduta exemplar e sábia, deixando lições que podemos aplicar em nossas vidas com relação à fidelidade, humildade e generosidade.

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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