Vamos com calma

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 03 de março de 2021

Dentre os pecados capitais a ira é talvez o pior

Quem é que nunca teve um ataque de raiva? É só ler o Antigo Testamento para constatar que até Deus de vez em quando perdia a paciência com suas criaturas. Não que lhe faltassem boas razões para isso e tanto mais e melhores razões tem agora, quando os homens parecem achar que Deus não existe ou que, se existe, o problema é dEle. Pode ser que Ele esteja apenas dando um tempo à humanidade para ver se ela, por conta própria, para de fazer burrada. Mas, pelo visto, o resultado não tem sido muito bom, é só olhar para o que os homens andam fazendo uns aos outros, aos demais bichos deste mundo e à natureza. Nossa sorte é que a ira de Deus dura um triz e sua paciência dura pelos tempos eternos, in saecula saeculorum. Amém.

Sim, quem nunca viveu, ainda que uma única vezinha, esse momento em que um raio parece nos ter atingido, e tudo em volta fica vermelho, as feições se arrepiam, as mãos desatinam e a voz se desgoverna. Pudéssemos nos ver nessa hora e ficaríamos com tanta raiva de nós mesmos que jamais íamos nos permitir ficar com raiva de novo. Pena que em tais ocasiões nunca esteja por perto alguém com a calma e a coragem suficientes para colocar um espelho diante da nossa cara. Só assim veríamos o quão longe estamos de merecer o título de homo sapiens e o quão plenamente merecedores ainda somos do título de homo stupidus.

E não é por falta de conselhos. A sabedoria popular está cheia de boas recomendações que ajudam a cozinhar a cólera em fogo brando e depois deixar que ela vá esfriando por conta própria, feito panela destampada. Contar até dez ou, dependendo do tamanho do ataque, até cem ou mil é uma delas; tirar as calças pela cabeça também ajuda muito. E, no caso de a fúria se dirigir especificamente a alguém, é útil pensar contra ele as palavras mais feias, tais como onagro, sevandija, abantesma ou histrião. Pensar e calar, porque imagine as graves consequências de você, furioso, gritar ao seu interlocutor: “Você não passa de um réprobo!”  Se bem que é possível que ele reaja como aquele sujeito que, chamado de mentecapto, ficou comovido e agradeceu o elogio.

Escrever é ainda melhor, contanto que o escrito não seja enviado. Conta-se que certo general procurou Abraham Lincoln para queixar-se de um colega de farda. Após ouvir o imenso rol das acusações, o presidente recomendou que o homem lhe entregasse uma carta, registrando minuciosamente tudo o que lhe havia dito. O bravo soldado (naquele momento um soldado bravo) saiu da entrevista certo de que enérgicas medidas seriam tomadas contra seu desafeto. Dias depois, tocou no assunto com o presidente, ocasião em que foi informado de que aquela bela peça bélica e literária estava guardada, trancada e calada numa gaveta. Com espanto, o general quis saber quando afinal seus insultos chegariam aos olhos do destinatário, ao que Lincoln respondeu que, uma vez que o desabafo havia sido feito, e por escrito, o autor já devia ter esfriado a cabeça e lavado a alma. Portanto, não havia mais motivo para que a carta fosse entregue. E deu por encerrada a questão.

Acalmemo-nos, porque, pensando bem e com calma, concluiremos que dentre os pecados capitais a ira é talvez o pior, tanto que tem por patrono um demônio chamado Azazel, e pelo nome já se vê que boa coisa ele não é. Além disso, a ira é, de todos os pecados, o que mais se volta contra o próximo. Nos outros seis... Só para lembrá-lo, leitor, para que você possa melhor avaliar o quanto tem pecado ultimamente, o elenco completo é o seguinte: soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e preguiça. Pois bem, nos outros seis o mal se volta contra o próprio pecador, mas a tal da ira costuma ser despejada em cima de quem não tem nada com isso, às vezes estava só de passagem.

E se você conseguiu vencer a preguiça e ler esta crônica até aqui, sem ter ficado com raiva do autor, já obteve duas grandes vitórias. É só continuar se desviando dos outros cinco pecados e vai chegar ao fim do dia mais inocente que um passarinho voando no Jardim do Éden.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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