Trezentos-e-cincoenta

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 02 de abril de 2024

Ninguém se molha duas vezes na água do mesmo rio

É um truísmo, mas é também uma verdade: basta termos a coragem de nos encararmos um só instante para concluirmos que estamos ─ como tudo que é vivo – em constante transformação. Ao acordarmos de manhã, já não somos aquele mesmo que se deitou à noite: um fio de cabelo branco brotou discreta, mas irreversivelmente; uma ruga riscou a testa e tende a se aprofundar. Talvez nos iludamos, achando que mudamos para melhor. Mas, se os que nos conhecem concordam, pode ser apenas porque o sentimento de solidariedade imposto pela frágil condição humana os obrigue a mentir, ou a calar, o que não é senão outra forma de mentir.

Tudo muda, disso já sabia o filósofo Heráclito, ao afirmar que ninguém se molha duas vezes na água do mesmo rio, pois, ao entrar, a água já é outra, e outra é a própria pessoa que mergulha. E, claro, não se trata só de mudança física, que dessa o tempo cuida com especial zelo, segundo a segundo, até o dia em que não temos escolha senão reconhecer que já não somos o que pensávamos, e então nos perguntamos, como Cecília Meireles: “Em que espelho ficou perdida a minha face?” Mudamos principalmente naquilo que julgávamos ser o mais permanente: convicções e lembranças; a simpatia que virou amor para a vida inteira; o que sabíamos e desaprendemos; o que era certeza e agora reconhecemos ter sido apenas ignorância, fantasia ou mera ilusão. O futuro é incerto e o passado, instável.

Julgamos que somos uno, inteiro, indivisível, contudo, como descobriu Mário de Andrade: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta”, embora acreditando que “um dia afinal eu toparei comigo”. E mesmo que afinal topemos conosco, para os outros continuaremos sendo tantos quantos são os que nos olham. Cada um que nos vê, vê uma pessoa diferente, diferente sobretudo daquilo que nós mesmos enxergamos em nós.

Essa filosofia de botequim, essa sabedoria de almanaque me assaltou quando, passando por uma rua, me lembrei que ali morava uma amiga que tive em tempos idos. Certa vez, estávamos justamente filosofando sobre o quanto tínhamos mudado, como pessoas e como profissionais, desde o dia em que, numa sala de aula da faculdade, nos encontramos pela primeira vez. Com humilde bom-humor, admiti: “Se eu tivesse me conhecido dez anos atrás, eu não falaria comigo”. Ela, com bem-humorado sarcasmo, respondeu: “Por aí você vê o que tenho aguentado!”

Se, no momento em que eu passava, ela abrisse a janela e nos víssemos, o máximo de intimidade que poderíamos nos permitir seria um contido aceno de mão, um “oi” desanimado. Longe vai o tempo das confidências, tempo em que fazíamos piada um com o outro e nos divertíamos com isso. “Mudaria o Natal ou mudei eu?”, perguntou-se Machado de Assis. No caso da minha amiga (que não abriu a janela), mudou ela, mudei eu. Para ambos, o Natal é outro, outros Natais.

Quem ela enxerga agora, quando, por acaso e a distância, me vê? A visão será totalmente ruim, ou ao menos será amenizada pela lembrança feliz de coisas passadas? Grande é o desafio de mudar tentando preservar o que acaso tenhamos de bom, tentando melhorar naquilo que nos for possível e aceitando os altos e baixos ─ inevitáveis para mim, para você e para a minha amiga (que não abriu a janela).

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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