Meninos

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Um menino não há de nascer em vão.

A qualquer hora, podeis constatar: os meninos ainda nascem. As mesmas caras assustadas, o mesmo choro de espanto, o mesmo jeito frágil e indeciso de passarinho que pela primeira vez deixa o lar e vem conhecer a realidade aqui fora. A realidade é às vezes dura, às vezes agradável. Os meninos vão se acostumando a descobrir que existe o beijo e a bofetada, o sol e a lua, o jogo de bola e os deveres escolares. Os casais passam e os meninos olham, vagamente desconfiados de que assim começam todos os meninos. O pai chega do trabalho, a mãe traz um remédio amargo, a televisão sai do ar justo na hora do desenho, o avô vem visitar e entrega chocolate. Um dia chove, os meninos se chateiam, vão inventar moda dentro de casa; no outro dia é um exagero de sol, um imenso ovo amarelo estrelado no céu, piscina, picolé, peraltices pelas ruas.

Sim, os meninos ainda nascem, embora a muitos de nós isso possa parecer insensato e inútil. Mas em cada menino que nasce revivem todas as esperanças e todos os desafios. Todo menino inaugura o mundo novamente. Para ele não importa que os homens se trucidem há tanto tempo sobre a face da terra: o menino veio para a paz. Para ele não pesa que os homens bebam e joguem e matem e se matem: o menino veio para o equilíbrio e a sobriedade. Para ele não conta ser filho do amor ou do descuido da aventura: o menino veio para inventar a pureza e a responsabilidade.

O menino é tão inocente, tão confiante, tão menino, que se atira nos braços dos homens e adormece. Um adulto quer apagar a chama do futuro porque o menino é culpado desde sempre e está condenado a repetir os mesmos pecados. Outro adulto, no entanto, olha para aquela criança, água ainda não turvada, e quer abafar a sombra do passado, porque o menino é bem capaz de descobrir no vento uma cantiga nova, que possa redimir o mundo. Se os meninos ainda nascem é porque há esperança. Cada menino que nasce é outra oportunidade de um mundo melhor. Um menino não há de nascer em vão.

Dormem muito. Às vezes abrem os olhos e contemplam a vida em redor. Talvez desanimem do que veem, talvez ainda se sintam fracos para enfrentar tanta coisa contraditória. Até que um dia criam coragem e resolvem que já é hora de sair do esconderijo. Então descobrem que o trigo vira massa, a massa vira pão, mas as pessoas nem sempre têm o que comer e o pão que o diabo amassou não é apenas uma maneira de falar. Há pássaros e há gaiolas, mas a liberdade é uma fome incurável.

Adolf Hitler é um sujeitinho rígido e antipático; Albert Schweitzer toca piano e aplica injeções. Um homem foi assaltado, espancado e largado na estrada; dois outros passaram por ali e se afastaram, um terceiro, porém, tratou dele e o levou para a hospedaria. Há sempre guerras, porque muitos amam o poder e a glória, mas há também tantas guerras evitadas, porque outros amam a paz. Derrubam-se florestas para plantar cimento, para plantar fumaça, para plantar dinheiro, mas o vento, que ignora tudo isso, vai transportando pólen, feito um cupido ecológico.

Cedo os meninos percebem que assim é o mundo em que terão de viver. Então escolhem o lado em que vão ficar. Alguns crescem, criam barba e se transformam em apenas mais um homem, disparam o revólver, ferem o chão em que pisam, envenenam o próprio ar que respiram. Mas todos trazem em si a esperança, que é nossa, apesar das nossas fraquezas, de um dia em que “O homem confiará no homem / Como um menino confia em outro menino”, tal qual sonhou Tiago de Mello, o poeta.

Eis, pois, o que te digo, a ti que mal abres os olhos e quando o fazes não distingues o médico que te trata do gato que mia na janela: não te iludas, que a vida não é mãe nem madrasta: é sempre e para todo o mundo um pouco de cada coisa. Acredita que a travessia merece ser feita e que deves fazê-la de modo a deixar o caminho mais claro e fácil atrás de ti. Acredita na vida, que não pode ser um mar de rosas, mas é uma rosa que se abre a cada manhã. Acredita nos outros, que são apenas pessoas, mas desejariam ser anjos na terra ou estrelas no céu. E, sobretudo, acredita em ti mesmo e age de tal forma que as pessoas possam dizer, ao te virem passar: “É um bom menino, um bom menino”.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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