O retorno a Demóstenes

Necessidade de superar a gagueira foi fundamental para que Demóstenes pudesse se consagrar como Orador de Atenas
sexta-feira, 21 de outubro de 2022
por Jornal A Voz da Serra
(Foto: Louvre/Wikipedia)
(Foto: Louvre/Wikipedia)

Qualquer fonoaudiólogo que tenha tido, em alguma época, a oportunidade de investigar, na literatura, o caso de Demóstenes e encontrar a luz que este caso pode lançar sobre o seu próprio método de tratamento da gagueira, sobre a posição por ele ocupada como Grande Orador da Antiguidade e por sua nomeação, por muitos, como o pai da Fonoaudiologia, poderá admitir que o método de tratamento para a fala criado por ele não vem recebendo a atenção que merece, em vista do papel que desempenha na invenção da cura de sua gagueira, na transformação de sua posição discursiva, subjetiva e social e na constituição da clínica fonoaudiológica. 

Os dados históricos recolhidos da escrita biográfica por Plutarco apontam que Demóstenes esteve, desde sua infância, marcado por vivências difíceis. Demóstenes, um sujeito que em sua trajetória de vida, para chegar ao topo do cânon Ático dos Oradores Gregos, teve que engolir diversas rejeições e decepções por causa do mal-estar produzido por sua fala gaguejada. A necessidade de superar a gagueira e desfazer o mal-estar na fala foram fundamentais para que Demóstenes pudesse se consagrar como Orador de Atenas. Foi também o resultado de um investimento de trabalho com o corpo e com a linguagem, para recuperar a sua honra e receber de volta a sua coroa de ouro. 

Na Fonoaudiologia, ficou conhecido essencialmente por uma prática: falar com pedrinhas na boca. Por incrível que pareça, as contendas que envolvem a história da Fonoaudiologia passam sem um aprofundamento necessário pelo método de Demóstenes, considerado o seu fundador. É difícil escapar à primeira impressão de que o caso de Demóstenes resolve-se simplesmente por um passe de mágica, ao falar com seixos na boca. O famoso mito das pedrinhas na boca que tanto curaram Demóstenes quanto as rolhas, chupetas e línguas de sogra usadas nas intervenções fonoaudiológicas até os dias atuais, são tributárias da criação de uma fundamentação técnica e da invenção da clínica fonoaudiológica tal como a conhecemos hoje. 

Pode-se verificar a capacidade de sobrevivência das pedrinhas na boca, ainda que revestida de outras aparências, como táticas de tratamento para a gagueira que constituem uma discursividade que remonta à própria tradição histórica da Fonoaudiologia. É comum vincular a mensagem das pedrinhas a diferentes temáticas. Elas encontraram, no seu uso técnico sobre o corpo, uma tática de saber falar nos regimes de terapia fonoaudiológica. 

A prática de falar com pedrinhas na boca consitituiu um saber. Um saber que pode ter somente funcionado no caso de Demóstenes, ou um saber que funciona em determinadas circunstâncias, ou um saber que nega sua eficácia, ou um saber que anula o seu uso, ou um saber que pode ser usado terapeuticamente em outro caso clínico com semiologia semelhante e diagnóstico distinto e, ainda, um saber brincar e falar com pedrinhas na boca. 

O enigmático, na mensagem das pedrinhas de Demóstenes, é o truque que não foi contado ou o que não se sabe nessa passagem entre falar com pedrinhas na boca e a instauração de uma discursividade capaz de oferecer uma nova referência sobre a fala.

É certo que nem todos os fonoaudiólogos usam como tática as pedrinhas e suas variantes, em suas clínicas, sem um raciocínio diagnóstico ou uma direção metodológica, nem mesmo há uma hegemonia na área se existe a tal cura da gagueira e principalmente, porque, menos ainda, há quem defenda resolvê-la essencialmente por colocar pedrinhas na boca e pronto, falar! Mas, que poder é esse das pedrinhas – que a elevam a uma potência, a uma situação superior na política da cura da fala? Qual é a mensagem que elas passam no sistema de transmissão da clínica fonoaudiológica? 

Eis porque, sem uma articulação e interrogação suficiente, o método de tratamento de Demóstenes permanecerá como um enigma: falar com pedrinhas na boca. Resta tentar responder ao enigma, dando a ele algum sentido e explicação. 

Sugestão: O leitor poderá encontrar na tese de doutorado “Estrutura Clínica Fonoaudiológica: modelo de articulação sujeito e linguagem na determinação de sintomas fonoaudiológicos”, de Gisele Gouvêa, os mecanismos do seu método de tratamento para a emergência da clínica fonoaudiológica tal como a conhecemos hoje, pela qual se deduz a experiência prática e os limites da estratégia clínica. (*Mestre e doutora em fonoaudiologia pela PUC-SP)

 

Publicidade
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Publicidade
Publicidade
Publicidade

Apoie o jornalismo de qualidade

Há 79 anos A VOZ DA SERRA se dedica a buscar e entregar a seus leitores informações atualizadas e confiáveis, ajudando a escrever, dia após dia, a história de Nova Friburgo e região. Por sua alta credibilidade, incansável modernização e independência editorial, A VOZ DA SERRA consagrou-se como incontestável fonte de consulta para historiadores e pesquisadores do cotidiano de nossa cidade, tornando-se referência de jornalismo no interior fluminense, um dos veículos mais respeitados da Região Serrana e líder de mercado.

Assinando A VOZ DA SERRA, você não apenas tem acesso a conteúdo de qualidade, mantendo-se bem informado através de nossas páginas, site e mídias sociais, como ajuda a construir e dar continuidade a essa história.

Assine A Voz da Serra

TAGS: