HAICAI

A relação do ser humano com o mais íntimo da natureza é um de seus pilares filosóficos
sexta-feira, 28 de março de 2025
por Jornal A Voz da Serra
(Foto: Freepik)
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O haicai é uma breve composição poética de origem japonesa. Seu fundamento filosófico é o princípio budista segundo o qual tudo no mundo é passageiro, competindo ao ser humano reconhecer-se como passivo de mudanças contínuas, como a natureza e as quatro estações do ano. No plano temático, busca expressar a relação entre o ser humano e a natureza.

O haicai popularizou-se pelo mundo como um tipo de poema que alia a concisão à reflexão sobre a passagem do tempo e a relação entre o ser humano e a natureza
No século XVII, o poeta japonês Matsuo Bashô (1644-1694) notabilizou-se como um grande mestre de haicai, permanecendo sua poesia como uma fonte de inspiração até hoje. No Brasil, esse estilo de poema continua sendo produzido com muita consistência.

O haicai é composto por três versos, sendo que o primeiro tem cinco sílabas poéticas, o segundo tem sete e o terceiro, cinco. Observe o exemplo a seguir:

Inverno

“O sol de inverno:

a cavalo congela

a minha sombra.”

Esse haicai, de autoria de Bashô, escrito entre 1687 e 1688, tem:
  • No 1º verso, cinco sílabas poéticas: O/sol/de in/ver/no;
  • No 2º, sete sílabas poéticas: a/ ca/va/lo/ con/ge/la;
  • No 3º, cinco sílabas: a/ mi/nha /som/bra.

Em relação ao aspecto temático, o haicai de Bashô mantém-se fiel ao gênero, caracterizado por apresentar reflexões sobre a natureza, a passagem do tempo, e reflete sobre uma estação do ano marcada pelo frio.

No Brasil, destacam-se como grandes poetas na composição de haicais, Paulo Leminski, Millôr Fernandes, Guilherme de Almeida e Paulo Franchetti:

Paulo Leminski (1944-1989)

O poeta curitibano também foi tradutor, crítico literário, compositor e professor. Muito influenciado pela cultura japonesa, tornou-se admirador da obra de Matsuo Bashô, o que o inspirou a produzir esse estilo de poesia. Veja alguns haicais de Paulo Leminski:

"soprando esse bambu

só tiro

o que lhe deu o vento”

“confira

tudo que respira

conspira”

“a palmeira estremece

palmas pra ela

que ela merece"

Nesses três haicais, todos sem título, observa-se características marcantes desse estilo de poema. No primeiro, os elementos da natureza, combinados e manipulados pelo ser humano, resultam em sons. No segundo haicai, o eu lírico alerta o leitor para a conspiração, vista como algo inerente a qualquer ser que respira, humano ou não. No terceiro poema, exalta-se a imponência e a beleza das palmeiras, as quais têm suas folhas agitadas pelo vento."

Millôr Fernandes (1923-2012)

Humorista, dramaturgo, desenhista, escritor e jornalista, entre outros livros, Millôr escreveu a coletânea Hai-Kais, obra que reúne os haicais escritos por ele entre 1959 e 1986. Veja alguns deles:

“Exótico,

O xale da velha

Na jovem é apoteótico.”

“Olha,

Entre um pingo e outro

a chuva não molha.

Prometer

E não cumprir:

Taí viver.”

“No ai

Do recém-nascido

A cova do pai.”

No primeiro haicai, reflete-se sobre a diferença entre as gerações personificadas por uma mulher velha e por uma jovem. Essa diferença é delineada por um xale, que ao ser usado pela mais velha confere-lhe um ar exótico, ao passo que se usado pela mais jovem seria algo extraordinário, mais do que exótico.

No segundo haicai, nota-se a expressão de temáticas muito caras aos autores desse estilo: a menção a elementos da natureza. No haicai em questão, a chuva, quando vista na forma de seus pingos espaçados, não seria capaz de molhar como quando encarrada em sua totalidade.

No terceiro haicai, o eu lírico apresenta uma máxima segundo a qual não há quem prometa o que possa cumprir. No último haicai da seleção, observa-se que o choro de dor do filho recém-nascido representa para o pai a morte, tamanha a vontade de que o bebê não experimente nenhum sofrimento."

Guilherme de Almeida (1890-1969)

Um dos imortais da Academia Brasileira de Letras, além de poeta e escritor, Almeida foi advogado, tradutor, crítico literário e jornalista. Escreveu uma vasta obra poética, tendo se notabilizado como um grande autor de haicai. Veja alguns deles:

Chuva de primavera

“Vê como se atraem

nos fios os pingos frios!

E juntam-se. E caem.”

Infância

“Um gosto de amora

comida com sol. A vida

chamava-se ‘Agora’.”

De noite

“Uma árvore nua

aponta o céu. Numa ponta

brota um fruto. A lua?”

No primeiro haicai, evidencia-se, já a partir do título, uma característica muito recorrente nesse tipo de poema: a exploração temática das estações do ano. No poema em análise, a primavera é posta em evidência quando o eu lírico chama o leitor para ver como a chuva constitui-se pela junção dos vários pingos frios, os quais, juntos, formam a sua versão de primavera.

Em “Infância”, a passagem da vida, reflexão comum em muitos haicais, aparece metaforizada na imagem de uma amora comida pelo Sol, sem que esse ato seja cogitado para ser feito depois por uma criança, que tende a comer a fruta colhida assim que a encontra no pé.

No haicai “De noite”, a natureza, em sua simplicidade, é protagonista de espetáculos mágicos, como o de fazer a Lua, à noite, parecer, a depender do ponto de vista e da perspectiva de quem a olha, um fruto de uma árvore."

Paulo Franchetti (1954)

O autor, crítico literário e professor universitário, destaca-se, na atualidade, como um dos mais expressivos produtores de haicai no Brasil. Entre outras obras, Franchetti publicou, em 1990, a antologia Haikai. Confira:

Primavera (Haru)

“Na tarde abafada,

Só a voz de uma galinha

Que botou um ovo.”

Verão (Natsu)

“Com que certeza

Voam todas para oeste,

Garças desta manhã.”

Outono (Aki)

“O outono chegou —

Mais distantes e azuladas

As mesmas montanhas.”

Inverno (Fuyu)

“Manhã de frio.

Se fosse menino escrevia

Meu nome no vidro.”

Nesses quatro haicais de Franchetti, as estações do ano são evidenciadas. No primeiro poema, a normalidade de um dia silencioso de primavera, estação caracterizada pelo florescimento da vegetação, é interrompida pelo cacarejo de uma galinha que acabou de botar. No segundo haicai, o destaque é para as garças, pássaros que, após o despertar do Sol, migram do lugar em que passaram a noite para o oeste.

No terceiro haicai, as montanhas são impactadas pelas características climáticas do outono, o que dá a impressão de que essas formações geográficas estão ficando mais distantes e azuladas. No quarto haicai, o frio característico do inverno é ressaltado pela neblina impregnada no vidro, o que propiciaria ao eu lírico, caso quisesse, escrever seu nome nele.

(Fonte: brasilescola.uol.com.br/literatura/)

 

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