A produção literária nacional sempre contou com a participação feminina, apesar de nem sempre associarmos as mulheres à poesia brasileira. Por que esse “apagamento” acontece? Todos sabemos das questões históricas que fizeram, por muito tempo, com que as mulheres permanecessem à sombra dos homens em diversos aspectos, inclusive nos culturais.
Nem mesmo os grandes nomes da historiografia da literatura brasileira registraram a contento a participação feminina no mundo das letras, embora as mulheres estivessem, desde muito tempo, produzindo literatura.
À margem da consagrada poesia brasileira, encontramos nomes como Cecília Meireles, Cora Coralina, Adélia Prado, Ana Cristina César, Elisa Lucinda e tantos, tantos outros que, provavelmente, muitos nunca ouviram falar. Por acaso, são as mulheres menos produtivas e interessantes na literatura do que os homens? Bom, a essa pergunta respondemos com alguns poemas produzidos por nossas injustiçadas poetas, apenas para ratificar que ELAS existem!
Retrato, de Cecília Meireles
“Eu não tinha este rosto de hoje, / Assim calmo, assim triste, assim magro, / Nem estes olhos tão vazios, / Nem o lábio amargo. / Eu não tinha estas mãos sem força, / Tão paradas e frias e mortas; / Eu não tinha este coração / Que nem se mostra. / Eu não dei por esta mudança, / Tão simples, tão certa, tão fácil: / — Em que espelho ficou perdida / a minha face?”
Aninha e suas pedras, de Cora Coralina
“Não te deixes destruir…/ Ajuntando novas pedras / e construindo novos poemas. / Recria tua vida, sempre, sempre./ Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. / Faz de tua vida mesquinha / um poema. / E viverás no coração dos jovens / e na memória das gerações que hão de vir./ Esta fonte é para uso de todos os sedentos. / Toma a tua parte. / Vem a estas páginas / e não entraves seu uso / aos que têm sede.”
Casamento, de Adélia Prado
“Há mulheres que dizem: / Meu marido, se quiser pescar, pesque, / mas que limpe os peixes. / Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, / ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. / É tão bom, só a gente sozinhos / na cozinha, / de vez em quando os cotovelos se esbarram, / ele fala coisas como “este foi difícil” / “prateou no ar dando rabanadas” / e faz o gesto com a mão. / O silêncio de quando nos vimos a primeira vez / atravessa a cozinha como um rio profundo. / Por fim, os peixes na travessa, / vamos dormir. / Coisas prateadas espocam: /
somos noivo e noiva.”
Fagulha, de Ana Cristina César
“Abri curiosa / o céu. / Assim, afastando de leve as cortinas. / Eu queria entrar, / coração ante coração, / inteiriça / ou pelo menos mover-me um pouco, / com aquela parcimônia que caracterizava / as agitações me chamando / Eu queria até mesmo / saber ver, / e num movimento redondo / como as ondas / que me circundavam, / invisíveis, / abraçar com as retinas / cada pedacinho de matéria viva. / Eu queria / (só) perceber o invislumbrável / no levíssimo que sobrevoava. / Eu queria / apanhar uma braçada / do infinito em luz que a mim se misturava. / Eu queria / captar o impercebido / nos momentos mínimos do espaço / nu e cheio / Eu queria / ao menos manter descerradas as cortinas / na impossibilidade de tangê-las / Eu não sabia / que virar pelo avesso / era uma experiência mortal.”
Amanhecimento, de Elisa Lucinda
“De tanta noite que dormi contigo / no sono acordado dos amores / de tudo que desembocamos em amanhecimento / a aurora acabou por virar processo. / Mesmo agora / quando nossos poentes se acumulam /
quando nossos destinos se torturam / no acaso ocaso das escolhas / as ternas folhas roçam / a dura parede. /
nossa sede se esconde / atrás do tronco da árvore / e geme muda de modo a / só nós ouvirmos. / Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos / o pio de todas as asneiras / todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha / para um dia partirem em revoada./ Ainda que nos anoiteça / tem manhã nessa invernada /
Violões, canções, invenções de alvorada… / Ninguém repara, / nossa noite está acostumada.”
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