Acusado de duplo feminicídio, Marotti é condenado só por crime de incêndio com morte

Júri popular desclassificou homicídio qualificado ao não reconhecer dolo de matar. MP e Defensoria vão recorrer
terça-feira, 08 de fevereiro de 2022
por Lucas Barros, especial para A VOZ DA SERRA
O protesto com cruzes e nomes de vítimas de feminicídio na porta do Fórum (Fotos de Henrique Pinheiro e Lucas Barros)
O protesto com cruzes e nomes de vítimas de feminicídio na porta do Fórum (Fotos de Henrique Pinheiro e Lucas Barros)

Acusado de duplo feminicídio contra Alessandra  Vaz e Daniela Mousinho em outubro de 2019, Rodrigo Marotti foi condenado na madrugada desta quarta-feira, 9, somente pelo crime de incêndio qualificado com resultado morte, além de furto de veículo, depois que o júri popular não reconheceu dolo de matar. A pena de  19 anos e quatro meses de prisão  em regime inicialmente fechado foi sentenciada à meia-noite, no Fórum de Nova Friburgo, pela juíza Simone Dalila Nacif, depois de mais de 12 horas de julgamento.

Os jurados desclassificaram o delito de homicídio qualificado  ao responderem "não" ao quesito da tese principal da defesa: "O réu teve dolo de matar?"

Diante da desclassificação do delito para crime não doloso contra a vida,  a competência sobre o caso deixou de ser do Conselho de Sentença e passou para a juíza presidente do Tribunal do Júri. Como o dolo de matar foi afastado pelos jurados, foi reconhecido apenas o dolo de incendiar casa habitada com resultado morte.

O MP recorreu para submeter o acusado a novo júri, a fim de que, em nova sessão, possa ser reconhecido o duplo feminicídio. A defesa, por sua vez, interpôs recurso para revisar a dosimetria da pena.

Familiares das vítimas ficaram perplexos e inconformados. A VOZ DA SERRA acompanhou todo o julgamento através de Lucas Barros,  titular da coluna “Além das Montanhas”.

Cinco horas de embates acalorados

Após os depoimentos das testemunhas e o interrogatório do acusado, os debates orais entre o promotor e o defensor público começaram às 17h20 desta terça, 8. As sustentações orais entre acusação e defesa foram acaloradas e dotadas de muita emoção. O embate durou até 22h10. Houve réplica e tréplica.

O promotor, Rodrigo Nogueira, iniciou sua fala se solidarizando com as vítimas e os familiares e apontou o caso como o mais chocante em cinco anos de trabalho.

Em sua sustentação, o promotor reproduziu áudios de conversas entre Alessandra e Rodrigo, que era seu sócio. Nesses áudios, ela,  mesmo muito triste pelo término do relacionamento e com a dificuldade de diálogo com o Rodrigo, nunca deixou de reconhecer a importância dele na vida dela e que ele foi um grande responsável pelo crescimento da empresa que tinham. Em áudio, Alessandra mencionou que, em caso de dissolução da empresa, pagaria inclusive um carro para o acusado e que ele nunca sairia desamparado. Houve muita comoção entre os familiares.

Ao final, o promotor afirmou que a sociedade não quer vingança, mas sim um julgamento justo, com uma condenação e uma pena de prisão condizente com os crimes que o acusado cometeu. 

O defensor público, Eduardo Castro, por sua vez, trabalhou de forma muito técnica e respeitosa, se solidarizando com os familiares da vítima. Explicou ainda que lhe competia garantir que o acusado tivesse todas suas prerrogativas ressalvadas e defendidas com amparo nas provas contidas no processo.

Em seguida, o defensor realizou duras críticas aos laudos do processo, uma vez que atestam poucas coisas e não conseguem comprovar muitos detalhes necessários ao processo.

Por fim, pontuou que argumentou que se tratou de um crime de incêndio com resultado morte, diferentemente de um homicídio. Depois, explicou que crime de homicídio possui muitas qualificadoras e que caberia aos jurados definirem, no seu íntimo, se as provas seriam suficientes para uma condenação.

Em seguida, a plateia foi retirada do salão do júri popular, restando dentro dela apenas o promotor, o defensor, a juíza e os jurados responsáveis pela votação secreta, em que condenariam ou absolveriam o acusado.

Como foi o julgamento

Mais cedo, pela manhã, com cruzes, nomes e fotos de vítimas de feminicídio, a calçada em frente ao Fórum, na Avenida Euterpe, amanheceu  com um protesto pacífico pedindo sentença máxima para o réu. Marotti é acusado de, há dois anos e quatro meses, trancar a ex-companheira Alessandra e a amiga dela, Daniela, em uma casa no Stucky, no distrito de Mury, e atear fogo no imóvel. Daniela, de 47 anos, morreu dois dias depois do crime. Alessandra, que teve 80% do corpo queimados, ficou internada em estado grave até dias depois, mas também não resistiu.

O julgamento,  no Salão Popular do Fórum, começou às 11h, com clima de comoção do lado de fora. Durante cerca de 12 horas foram ouvidas 16 testemunhas, sendo 11 arroladas pela acusação e  cinco arroladas pela defesa.

Na chegada ao Fórum, o carro do Secopen que transportava o réu foi alvo de muitos gritos de "assassino", proferidos pelos populares na rua, comovendo muitas pessoas que estavam em volta.

Inicialmente foram ouvidos alguns vizinhos, que relataram terem ouvido gritos, seguidos de pedidos de socorro vindos da casa, na noite do crime. De pronto, avistaram duas pessoas com braços e cabeças para fora do basculante do banheiro, mas não conseguiam sair, visto que era uma janela pequena. 

De acordo com as testemunhas, ao se dirigirem até a casa, Marotti teria arrancado e arrombado o portão usando o carro de Alessandra, tentando inclusive atropelar um dos vizinhos. Ainda segundo os relatos, os vizinhos entraram na casa, que já estava em parte consumida pelas chamas, e tentaram chegar perto do banheiro onde estavam as vítimas.

De acordo com os depoimentos, que descrevem uma verdadeira cena de terror, uma barbárie,  as vítimas saíram em chamas do banheiro muito machucadas. Contudo, algo que surpreendeu um dos depoentes foi o fato de as vítimas estarem mais preocupadas com a presença de Rodrigo dentro da casa do que com o próprio incêndio, mesmo com grande parte dos corpos queimados.

Conforme os relatos, as vítimas sentaram-se na calçada e receberam assistência das pessoas que estavam em volta enquanto esperavam o Corpo de Bombeiros, que demorou de 30 a 40 minutos para chegar. De acordo com os relatos dos vizinhos, as vítimas, ainda lúcidas, disseram que Rodrigo teria ateado fogo em um colchão depois de ambas terem se trancado no banheiro com medo dele.

Testemunhas de acusação

Um depoimento que chamou muita atenção de todos foi o de Andreza Vaz, irmã de Alessandra, que compareceu vestida com uma roupa da grife da irmã (abaixo, com a filha de Daniela, de preto). 

Ela relatou que Marotti não concordava com a retirada do seu nome da sociedade da empresa de roupas, visto que ele sempre cobrava sua participação financeira. Posteriormente, Andreza relatou que foi a primeira pessoa a falar para sua própria mãe que sua irmã havia sido assassinada e queimada. Nesse momento, Andreza se emocionou, gerando comoção na plateia.

Depois de respirar um pouco, ela relatou que Rodrigo era muito violento, mas que Alessandra evitava  preocupar os familiares. 

Em seguida, amigos relataram que Alessandra sempre comentava que Rodrigo estaria inconformado com a sua retirada da sociedade e com o fim do relacionamento. 

Uma das testemunhas, amiga de um centro espírita, esteve com Alessandra no dia de sua morte. Ela contou que Alessandra teria lhe dado um abraço e afirmado que estava com medo de Rodrigo, pois ele a ameaçara de morte. Após o encontro, Dani Mousinho estava do lado de fora, aguardando Alessandra. Esses detalhes foram revelados com exclusividade por uma reportagem de A VOZ DA SERRA dias depois do crime (RELEMBRE AQUI).

Sócios e amigos relataram que Alessandra, mesmo após o término do relacionamento, buscou o máximo possível ajudar o namorado. Segundo uma das testemunhas, a própria Alessandra havia feito um plano para desfazer a sociedade, em que ele próprio  julgou ser muito alto. Nesse momento, Alessandra havia lhe dito que, apesar do fim do relacionamento, tinha carinho e gratidão por tudo o que ele fez pela empresa, sendo uma proposta tão satisfatória que ambos poderiam,  inclusive, ser amigos.

Em unanimidade, todas as testemunhas relataram que a Alessandra era uma pessoa muito carinhosa e que sempre buscou ajudar a todos, inclusive buscando reabilitar ex-dependentes químicos para que estes tivessem numa nova oportunidade de vida em sua empresa.

Segundo as testemunhas, na época do crime, Alessandra estava muito feliz de participar de uma grande feira chamada Vest Rio, em que levaria peças da nova coleção.

Testemunhas de defesa

Arroladas pela defesa técnica, da Defensoria Pública, duas ex-namoradas do Rodrigo disseram que nunca presenciaram nenhum tipo de violência por parte dele e que ele sempre foi um companheiro  “excelente”.

Em seguida, alguns familiares de Marotti prestaram depoimento alegando que Alessandra era uma pessoa violenta e possessiva e que, durante um episódio, chegou a bater em Rodrigo.

Alegaram ainda que, em determinada situação, Alessandra chegou a pular o muro da casa do namorado  para fazê-lo reatar com ela.

O interrogatório de Rodrigo

Às 16h, a juíza conduziu a audiência para que Rodrigo Marotti desse seus esclarecimentos sobre os fatos, sendo ele advertido de que, se ficasse em silêncio, isso não poderia ser levado em seu prejuízo.

Rodrigo, antes de começar o seu depoimento, disse sentir muito pela situação e prestou condolências aos familiares das vítimas.

Em seguida, Marotti negou os fatos. Em sua versão, apontou que foi convidado por Alessandra a ir até a casa, junto com a Daniela. Ao chegar à casa, foi até o quarto conversar com Alessandra e que ela mesma, durante a discussão, jogou álcool no colchão e ateou fogo. Nesse momento, Daniela subiu para o quarto, achou que sua amiga estivesse sendo agredida e levou-a para o banheiro, no intuito de cessaram as agressões.

Nesse momento, segundo a versão de Rodrigo, ele tirou o colchão de cima da cama e tentou colocá-lo para fora do quarto. Preocupado com o fogo, bateu à porta do banheiro para que elas saíssem, mas elas se negaram. Posteriormente, segundo ele, saiu de casa de carro para buscar ajuda.

Marotti afirmou que não usava drogas e que, quando chegou à delegacia, foi ouvido sem o advogado e que a versão narrada na delegacia não foi a sua, mas sim a dos policiais.

Às 17h20 começaram então as sustentações orais do promotor e, posteriormente, da defesa, após as quais o júri popular daria seu veredito em votação secreta.

Como explicou Lucas Barros em sua coluna "Além das Montanhas", o júri é formado por sete cidadãos comuns, escolhidos por sorteio, cabendo à juíza dar a sentença final. Réus são levados a júri popular sempre quando existem indícios de cometimento de crimes dolosos (intencionais) contra a vida de alguém, seja homicídio, aborto, infanticídio ou participação em suicídio, tanto na forma consumada ou somente na tentativa.

 O processo corria  em segredo de justiça, mas a magistrada Simone Lopes derrubou o sigilo na última sexta-feira, 4. A audiência foi restrita aos populares em respeito aos protocolos do Tribunal de Justica do Rio de Janeiro contra o coronavirus. Em contrapartida, foram autorizadas pela juíza presidente do júri a presença de cinco familiares de cada vítima, cinco do acusado e jornalistas. Entre os presentes no Fórum estavam alguns amigos e familiares das vitimas, entre eles a filha da Daniela Mousinho e a mãe da Alessandra Vaz.

Mãe de Alessandra, Sandra, muito emocionada, relatou em entrevista ao jornal antes do início do julgamento  que esperava que a justiça fosse feita. "Vim para representar minha família, pela Dani, pela Alessandra e por todas as mulheres que estão morrendo vitimas de feminicidio nesse país. Nós esperamos justiça", afirmou.

 

LEIA MAIS

Ele é acusado de distribuir balas e doces na vizinhança e levou vítima para sua casa

Vítima não tinha antecedentes criminais. "Já temos uma linha de investigação, mas ainda é prematuro falar", diz delegado

O que teria comovido criminosos foi cadeirinha especial de criança. Tanque não estava cheio, como disseram

Publicidade
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Publicidade
Publicidade
Publicidade

Apoie o jornalismo de qualidade

Há 79 anos A VOZ DA SERRA se dedica a buscar e entregar a seus leitores informações atualizadas e confiáveis, ajudando a escrever, dia após dia, a história de Nova Friburgo e região. Por sua alta credibilidade, incansável modernização e independência editorial, A VOZ DA SERRA consagrou-se como incontestável fonte de consulta para historiadores e pesquisadores do cotidiano de nossa cidade, tornando-se referência de jornalismo no interior fluminense, um dos veículos mais respeitados da Região Serrana e líder de mercado.

Assinando A VOZ DA SERRA, você não apenas tem acesso a conteúdo de qualidade, mantendo-se bem informado através de nossas páginas, site e mídias sociais, como ajuda a construir e dar continuidade a essa história.

Assine A Voz da Serra

TAGS: crime