Vinho, vela, lareira e romance

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 31 de julho de 2021

Se toda uva merece ser vinho, se toda cera é digna de ser vela, se todo fogo faz jus a ser chama, todo encontro deveria ser romance. Todo inverno de alguém pede primavera. O tal abraço que aquece mais do que casaco e gera o calor de mãos unidas formando história. Ainda que passageiras.

Posto que até os melhores vinhos podem vinagrar, que toda vela tem como destino findar, que fogo demais queima, é preciso entender que romances são definidos mais pela permissão que nos damos ao encantamento do que pelo encantamento em si. Há um pouco de escolha nesse roteiro que o mundo faz, pois o escrevemos de certa forma para nós mesmos. E ainda que o tempo possa ser personagem, jamais será ator principal. Somos protagonistas de nossas horas. 

Vinho é bom, em boa companhia melhor ainda. Muitas das vezes pode ser só a sua companhia mesmo. Não sei você, mas sou adepto do clube dos que nunca bebem sozinho. Ou quase nunca. Fato é que muitas das vezes, mesmo nas salas cheias, bebemos só com a gente mesmo. Que se brinde! Há solitários na festa das multidões? Também é preciso cuidado com a carência. Quando somos visitados por ela e deixamos que a carência nos dirija, acabamos por permitir que qualquer pessoa entre. Pode ser bom, mas também pode ser a pior das experiências. Que o vinho salve e avelude o paladar.

Luz de vela pode ser um pequeno sol no aconchego de dois. Faz brilhar os olhos e serena o espírito enquanto queima. É a paciência de quem derrete em intensidade, ainda que paciência e intensidade soem tão ambíguas. Mas é possível saber esperar e arder ao ponto que a espera se traduza em sonho prazeroso e a realidade extrapole o próprio prazer do que se vislumbrou. Se o destino do encontro for ser vela, terá valido a chama. Se o que ficar for memória, ainda sim será louvável a cera derretida e legítimas serão as cinzas do que foi barbante. Perdurará, portanto, a perecível sombra feita pela vela. O que você gostaria que fosse sombreado? 

Assim, a lareira pode queimar em vastos combustíveis e mais importante que a madeira, o álcool, o querosene ou mesmo eletricidade, é o motivo de acendê-la. Pode ser pela necessidade de espantar o frio, por puro charme ou filosofia, para unir pessoas em torno do fogo ou tão somente para apreciar tudo que a flama consome. Levará pensamentos vãos, fabricará saudades futuras ou retomará saudades passadas? 

O fogo é tão repleto de símbolos, mas nem ele é capaz de aquecer a alma quando essa está convicta de ser frio. Talvez precise de luva, gorro e cachecol. Talvez se desnude pela graça de ser liberdade e voe como as fuligens da lareira para alimentar toda vida que há do lado de fora. 

Se poesia se escreve com tinta de vinho, é aconchego o sentido que traz a neblina repousada no vidro da janela. O dedo indicador vira caneta e desenha lua na madrugada que já é sol. Pudera e quem sabe da sua coragem para rabiscar coração. A inquietação com o amanhã talvez venha mais das possibilidades do que do medo. Nem sorte ou azar, apenas velas aromáticas rosas, azuis e amarelas; vinhos merlot, malbec e carménère; lareira em vestígios de brasa... Espalhados no inverno, romance não sabe se será primavera ou se sequer precisa de outras estações.   

 

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(Foto: Freepik)
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