Sou como vela

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 10 de dezembro de 2022
Foto de capa
(Foto: Pexels)

Acendo vela para meu anjo da guarda. Peço que me proteja, inclusive de mim mesmo. Que a luz, mais do que ilumine meu caminho, seja guia para esse encontro não só quando preciso. Peço diante da vela que eu possa ver o que não vejo, sentir o que preciso sentir, esteja atento aos pedidos do mundo e se for minha missão que eu possa cumpri-los. Rogo que a vaidade não me entorpeça e vigilante possa sequer flertar com a arrogância, sabedor de que a arrogância é o acúmulo da vaidade despercebida. 

Acendo vela para relembrar os que amei e sigo a amar, mesmo não estando eles mais aqui nesse espaço-tempo. A luz da vela conecta com a espiritualidade de quem enquanto carne reconhece que tem alma. É a tal luz que relembra momentos que me fizeram ser quem eu sou e me trouxeram até aqui. Pudera ter as mãos que me carregaram até ontem, pudera ter essa presença física, não só... Ilumina o reencontro em outras esferas, ilumina as memórias que me fazem um ser repleto de saudades. Saudades boas mais do que doídas, ainda que vez em quando doam.     

Acendo vela na mesa de jantar para recobrar a gratidão em ter o alimento. Trazer para perto essa força celestial que me faz humano. Iluminar a graça de compartilhar com os que se sentam à mesma mesa e pedir que tantos outros possam ter tanto quanto tenho.  

Acendo vela para ilustrar o romance ou o desejo dele. Nem sempre será namoro, casamento, amor, mas a simples luz de vela mostra a intenção de querer mais do que apenas um encontro, a vontade de estender para muitas outras luzes de vela no mesmo rosto. Marcar a silhueta das faces encontrados e em sua sombra feita por luz ser cumplicidade, intimidade maior do que luz artificial de abajur. Beijar diante da música que não se quer findar, do silêncio que nem trovão pode quebrar.

Na fé de prosseguir para além de nós mesmos, na força da fé de encontrar o que deixamos, o que perdemos por ganhar, o que honramos e devemos honrar, o que precisamos para seguir pelos dias. Nos apelos ao sobrenatural e na compreensão da existência para além do que conhecemos, acendemos velas para ver além do que nossos olhos podem enxergar. Há tantos mistérios no viver que viver é transcender. 

E, nós, cada um de nós, somos como velas. Muitas vezes precisamos ser acesos para iluminar ou a alegria do que nos ilumina é tanta que acendemos por fluxo natural. Contagiados, acabamos por acender outro e mais outro e, de repente, se tem uma plateia inteira de velas acesas que brilham mais do que o sol. O sorriso é fósforo que causa fagulhas e o amor é a combustão mais do que perfeita para se manter aceso.

Mas como todas as velas também, por vezes, somos apagados com um simples tocar de dedos. São as circunstâncias impostas, os medos infligidos, a coragem sabotada, as rasteiras coletivas da histeria cotidiana do rancor e do ódio. A inveja que mina nossos talentos e a própria intenção de persistir. Gente que nos sopra sorrateiramente ou ventos imprevistos que tentam abalar a nossa fé no outro e no mundo. Há vezes que nos derretem ao ponto de sermos apenas parafina grudada à superfície e sem pavio não encontramos saídas para acender de novo.

Mas vela se refaz e mesmo derretida pode ser vela de novo. Talvez, seja parte do viver se refazer e ter constância nesses feitos e desfeitos. Mais do que insistir é compreender que nem sempre é necessário ser teimoso. É preciso se deixar queimar até perto do fim para se fazer vela em novo molde, para acender de novo e ascender na convicção de que a felicidade é o objetivo maior. 

Não importa se vela branca, amarela ou vermelha. Com cheiro de alecrim, rosas ou lavanda. Somos tantos que não cabe julgamento ou comparação. Somos tão únicos e renascemos de maneiras tão únicas que tantas vezes já somos outro, mas nunca igual a nada que já se viu.

Assim, acendo vela para meu anjo da guarda, para os amores que tive e terei, pela gratidão de poder existir. Acendo vela para o que sou, fui e quero ser ao ponto que sou como vela que se junta a outras velas para quem sabe, iluminar o mundo.

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