Solidão de Natal

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 24 de dezembro de 2022

O Natal é essa época mágica em que os corações estão mais abertos, mais receptivos ao carinho que muitas das vezes recusamos ou não aceitamos receber. Despercebemos, para parecer menos cruel. É tempo de celebrar o amor e a humanidade que ainda nos resta. Em tempos de redes sociais e algoritmos, compartilhar olhar, peito e alma é o singular que vai muito além desse vazio de milhões de pixels em tela.

Familiares que não costumam se ver no restante do ano — ceiam juntos. Amigos se reúnem até para inimigos secretos. É a louvação ao encontro, essa possibilidade tão única de se perceber parte, e, em escala superior, parte de algo maior — o mundo. Esse lugar que só é um lugar por causa das pessoas que estão nele entremeando linhas que nos unem e nos acham. O amor assim se confirma muito mais do que um sentimento — é um lugar. Somos muitos lugares, pequenos e grandes, intensos e fugazes, cheios ou nem tão cheios assim. Mas são lugares, inclusive de saudade.

Por toda essa tradição, que vai muito além das árvores e das luzes que enfeitam as casas e as cidades, é que talvez o Natal também traga certa dor. Às vezes doída mesmo... N´outras, não propriamente uma dor que machuca. É apenas algo presente pelas ausências sentidas. A festa se renova, mas há certos rostos que perseveram na memória. É uma mãe, um pai, um companheiro, um tio, um amigo, um filho — um amor.

Há uma parábola que ilustra bem essa ausência de exclusividade para essa saudade que nos invade nesses momentos de confraternização. Adaptei a história que é mais ou menos assim: 

“Um homem perdeu a sua esposa, após mais de 30 anos casados. Tantos instantes, tanta trajetória, tantos natais. Inconsolável, ele vai à procura de um sábio para tentar compreender porque ele tinha que passar por isso. Ele queria a sua esposa de volta de qualquer jeito, pelo menos por mais aquele Natal. O sábio, atento e percebendo quanto de amor havia naquele triste coração, deu então uma esperança ao moribundo. ‘Posso conceder a possibilidade de trazê-la de volta para passar um último Natal ao seu lado. No entanto, você terá que cumprir uma pequena missão’. De pronto, o homem aceitou de bom grado. ‘Eu quero que você consiga qualquer ingrediente usado na ceia de Natal. Qualquer um. Mas com uma condição: o ingrediente deve ser de uma casa em que nenhum lugar à mesa esteja vago pela perda de alguém. De uma casa que a morte não tenha visitado ninguém daquele lar’. O homem achou a tarefa fácil e não perdeu tempo. Correu de casa em casa. Na sua rua, no seu bairro, nos bairros mais distantes de sua cidade e até de outras cidades. Ofereciam prontamente o ingrediente, mas ao saberem da condição imposta, logo relatavam uma mãe, um filho precocemente perdido, um marido, um amigo íntimo, um irmão que haviam perdido. Em nenhuma casa era possível conseguir o que o sábio pediu: um ingrediente de Natal de um lar que não tenha sido visitado pela perda de alguém próximo. O viúvo compreendeu que a sua dor, saudade, desejo de ter de volta, não era uma exclusividade sua. Que toda ceia de Natal, dos mais ricos aos mais pobres, falta alguém querido. Ficou grato por ter tido a felicidade de tantos natais junto à sua amada, pois outros tiveram por menos tempo ou pior, se solidarizou com aqueles pais que tiveram a dura infâmia de ver rompido o ciclo natural, sobrevivendo aos próprios filhos.” 

Sobreviver aos que se ama talvez seja o maior desafio humano. E sempre será preciso seguir. Assim, a solidão de Natal, as ausências do Natal podem ser vividas de maneira mais harmoniosa com a compreensão de que só sente saudade quem amou. Como é bom amar, se dedicar, ter histórias com pessoas que dão significado às nossas existências e preenchem as nossas biografias. 

É preciso perceber que a própria razão do dia, Jesus, não está fisicamente entre nós, mas sobrevive porque todos se reúnem em memória d’Ele, para relembrá-lo e para reacender a sua mensagem de amor ao próximo. Natal é a reafirmação do amor que sentimos e o compromisso cristão de amar e prosseguir.

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