Pedra do Arpoador

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 18 de março de 2023

As águas de março já vão varrendo o verão. As águas do mar apenas me separam de outros continentes. Da Pedra do Arpoador, a cidade mais próxima é Walvis Bay, a quase seis mil quilômetros azuis. Pelo caminho, talvez, ilhotas que não formam um lugarejo, muito menos um país. Toda a vida está no oceano e no céu que há sobre ele. 

O mesmo mar que me separa de outros continentes, não me afasta de outras possibilidades. A gaivota ligeira ensina que, assim como há uma infinidade de espécies de peixe no mar, há uma infinidade de cores no mesmo azul do céu. Escapam aos olhos sem poesia. Iludem as mesmas visões de quem teima em apenas ser poeta. A vida real não é das mais colaborativas com os românticos. 

As estações, uma a uma, ciclo após ciclo, desvirginam a ingenuidade. E nos tomam tanto, sem no entanto, levar as tolices. Colecionadas, viram teimosia e teimosas insistem em, quem sabe, nos fazer enxergar por outros ângulos. Pela premissa dessa visão incerta, dobramos a aposta. 

Do lado de lá, do outro continente, não veem e tampouco sabem das pedras do Arpoador. Estrangeiros olham os detalhes que levam nas fotografias. O Cristo Redentor ao longe, faz braços abertos para todos: cretinos, espertos, inocentes, vividos, indecisos, perdidos… 

Encantados, ignoram o cheiro de mijo e o lixo deixado por gente mesquinha. Capturam apenas a orla de Ipanema se juntando ao Leblon e o imperioso Morro dos Dois Irmãos, por onde primeiro se despede o Sol. Casais de todo tipo e combinações se beijam ao mesmo pôr do sol. Solitários perambulam por suas trilhas e imaginam o que há dentro do mar, inclusive o mar que carregam no peito. 

Há quem procure algo, há quem nada procure. Algo os encontrará? Hoje não sei, tanto quanto amanhã ninguém se atreverá saber. Em outros lugares, com mar ou sem mar, a cena se repete com pessoas diferentes, mas com personagens bastante semelhantes. 

Do outro lado do continente, o mesmo deve acontecer, enquanto as estações correm para tomar lugar na determinação do quanto chove, da permissibilidade com as flores e frutas, no comando de como devem ser os dias, se mais frios ou mais quentes. 

Somos como as estações. E, mesmo sem os cataclismas de El Niños ou El Niñas, determinamos os modos do tempo que temos. Se o Sol vai sair e se sair o quanto pesará os ombros ou trará leveza para as vistas. Se colheremos minutos nas horas e como serão esses frutos que plantamos. O melhor — se não se autocondenar — o sabor dos frutos pode mudar mesmo que já crescidos. E se o gosto é azedo e não se quer azedo, por que colher? Deixe no pé até cair, apodrecer, se tornar outra coisa na terra seca. 

As ondas do mar fazem barulho intenso, em ritmo constante. Não ousam surpreender, mas não se repetem no que trazem, no que levam. Como parte de algo maior, nos insultam. As águas do mar batem nas pedras e vagarosamente, quase que imperceptivelmente, vão moldando suas formas, costuram as ilhas que há entre os mesmos transformados continentes. 

Da Pedra do Arpoador, o infinito cabe em um pequeno grande espaço. De abraços em si mesmo, de braços dados a uma cidade, de olhares cruzados em uma orla que faz recorte do oceano como se as praias não pudessem invadi-los — cidade e donos dos olhares. 

Quando a noite dispensa o sol, a escuridão é vencida pelas estrelas e a mesma Pedra do Arpoador, agora mais vazia, se guarda para ter repetido tudo de novo. E não é exclusividade sua. O mesmo é com todos os descobertos lugares do mundo, exatamente como a gente mesmo nas imprevisíveis estações que fazemos ou adotamos. E são as estações que nos fizeram e nos fazem evoluir. 

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