O pão da vida

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 10 de julho de 2021

Somos massa e alma. Somos recheio e ar. Somos fermento e propósito. Ainda que a vida e toda vida tenha uma jornada comum como premissa – nascer, crescer, envelhecer e fatalmente morrer – não há receita para viver. Os recipientes em que se colocam os ingredientes que escolhemos, com suas respectivas medidas, até podem ter semelhança. Porém, assim como os próprios ingredientes, a ordem em que os adicionamos, a forma de misturá-los, o tempo de descanso e maturação irão nos diferenciar a todos nós, sem exceção. 

Por pequenos detalhes e mesmo em brutais coincidências, o resultado que somos, cada um de nós, é único, inimitável, inigualável. Somos mais diversos que os pães expostos nas prateleiras das mais inusitadas padarias de todo o mundo. Se o destino é um drama com enredo de comédia, a gente tem o poder de escolher muita coisa. Nossas escolhas nos definem, nos dão forma, casca e crosta. E não há problema algum esfarelar e se reinventar, ser diferente do que se planejou, ao ponto que o fim de cada um de nós é desmaterializar para voltar ao pó. 

Na arte dos verbos, empregamos sujeito e predicado. No íntimo dos adjetivos, flutua nossa alma... A alma, imperiosa ainda que oculta, é essa essência que nos faz acreditar que o trigo vire massa e massa se torne pão. Nosso esforço, no entanto, nunca é em vão, pois por mais que não se ganhe feito, nossas escolhas alimentam.         

Vamos apanhar para crescer. Vamos precisar de fermento para prosperar. Necessitaremos de descanso para se encontrar. Seremos moldados pelos encantos e desencantos que os caminhos nos dão, mesmo aqueles que não percebemos. Vamos ter que paralisar para tomar ar. Seguiremos pedintes por alegorias que nos enfeitem e, de vez em quando, na percepção dos sabores, simplesmente trocaremos de cores. Será importante o calor dos abraços ou mesmo o aperto de mão que nos gera a expectativa para sermos acolhidos por essa grande casa quente que é o coração. Singularmente, também seremos fornos para bronzear e dar camada aos que se achegarem.

Aquecidos, podemos sair antes do ponto. Podemos ficar um pouco mais ou se muito mais até se queimar. Alma não tem tato, ainda que possua seis sentidos. E o sentido da vida está em sentir, mais do que apenas fatias de pão e copo d´água. 

Há quem tenha fome de barriga cheia. Há quem procure, procure e jamais encontre o que procura. Não porque não tenha o privilégio de encontrar, mas sem peito aberto, a visão fica nebulosa e o coração acaba subestimado ao estômago. Não basta ter propósito. É fundamental permanente atenção, construção e desconstrução. A felicidade pode ser simples, mas aceitá-la requer certa coragem empática. Afirmar é mais firme do que passar a vida toda se negando a permissão de ser o pão que se pode ser.  

Assim, o amor - esse sonho menos enjoativo que a guloseima de confeitaria - é mais humano do que divino. Mora no companheirismo do café da manhã, mesmo para quem não tem o hábito de comer pela manhã. A alma – esse sobrenatural mais espantoso que a massa crescida após ser batida e descansada – é mais nossa do que do céu ou do inferno. Reside na sabedoria do experimentar e respeitar a si e à toda diversidade em volta, sem julgar e julgar a si próprio. Não há conselho melhor do que se escutar e fazer o que te faz brilhar os olhos. Mas a receita, é exclusivamente sua.           

         

 

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(Foto: Pexels)
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