Nossa canção

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 26 de novembro de 2022

Música é poesia traduzida em sons. Embalam histórias, enfeitam romances, conduzem conquistas, atenuam ou exageram dramas. Inspiram e se inspiram na vida. Acalmam a alma. Aquietam dores, mas também as fazem gritar, sair, encontrar seu próprio eco, para quem sabe escapulir ou mergulhar. Para se salvar. A mesma cólera que liberta, aprisiona. O que é se salvar? 

Há canções que nos encorajam no medo e tantas outras que nos atravessam para se atrever e ir. Simplesmente ir. “Caminhando e cantando e seguindo a canção” mesmo que “na corda bamba sem sombrinha”. Pudera ir apenas “atrás do trio elétrico” desejando “que essa fantasia fosse eterna… e viver será só festejar”. Na sobriedade de sonhador “deixa a festa acabar, deixa o barco correr, deixa o dia raiar”. “Quando o segundo sol chegar”, quem sabe, saberemos de verdade a “cantar, e cantar, e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz”. 

O compositor é um poeta com talento para ouvir. Sua obra — palavras que se juntam em melodias, frases que se fazem em métricas, literatura matemática que forma em cifras. Um ser especial que sabe falar com Deus, seja Deus quem for. Que sabe falar sobre amor sem ter a audácia de entender o amor. Que gosta de gente, nem sempre obrigado a gostar do que a vida dá, mas sempre ciente de que caminho é para se caminhar. 

Quem desenha música é um esperançoso tenaz. Um inventor de velhas coisas novas, ainda que sabedor de que quase tudo já foi criado, segue a confeccionar inéditas canções. Não suspende seus acordes, pois tem “à arte de sorrir cada vez que o mundo diz não”.  Se “o mundo é um moinho”, o autor de canções diz que “numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo” e crava que “nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá”. Sim, para o artista das letras sempre chega algo “na bruma leva das paixões que vêm de dentro”. O sobrenatural. “Se eu sou algo tão incompreensível, meu Deus é mais”.

O cantor é alma exposta. A voz que conecta palco e plateia, Terra e Universo. O coração que se soma a outros instrumentos que fazem seu corpo ser inteiro. Junta meios, corre estradas, sonha em ser estrela que é vista mesmo em noites claras. Ou tão somente canta na varanda, nos pequenos bares, no cenário particular do chuveiro, no pequeno mundo de um quarto de segredos dedilhados em um violão. 

Cantar é um dom, mas cantar mesmo sem saber cantar é uma forma de ser, viver, se libertar. Cantar não é apenas espantar seus males, mas é fazer chamado: “Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa”, porque “se ano passado eu morri, esse ano eu não morro”. Não há pecado em querer “a sorte de um amor tranquilo com sabor de fruta mordida” ou “um amor maior, um amor maior que eu”. Aliás, se “não existe amor em SP” e se “não precisa morrer pra ver Deus”, também “não existe pecado do lado de baixo do Equador”.  

Música é pluralismo. Para quem compõe, para quem canta, para quem ouve. E uma mesma canção tem sentidos múltiplos para sentimentos diversos. Ouvir música é se ouvir também, é escutar o seu momento, cada instante tão exclusivo em cada singular tempo que se tem. “o que foi prometido ninguém prometeu, nem foi tempo perdido, somos tão jovens”. Será? Respeitar mais do que entender. Por isso “chorar, sorrir também, e depois dançar na chuva quando a chuva vem”.

“Quem não gosta de samba, bom sujeito não é”. Quem não gosta de música não gosta de viver e não admira tudo o que a vida é. Paralelas mais do que linha reta. “É preciso saber viver”. Assim, encaixamos trilhas sonoras e trilhas nos visitam, mesmo sem convite. 

Nossas biografias são recheadas de sons, porque “a vida tem sons que pra gente ouvir, precisa aprender a começar de novo”. Cantamos novas músicas e tantas outras que sabemos de cor. Podemos ouvir, cantar, compor a mesma canção de formas diferentes, ainda que na mesma vitrola, mesmo que para os mesmos rostos, no mesmo violão. “Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. 

Se “Certas canções que ouço cabem tão dentro de mim”, “a sorrir eu pretendo levar a vida”. Ainda que “um nasce pra sofrer, enquanto o outro ri”, “vou sair pra ver o céu, vou me perder entre as estrelas”. De onde nasce o Sol, mesmo vendo que “enquanto todo mundo espera a cura do mal e a loucura finge que isso tudo é normal” não vou mais fingir ter paciência. 

Posto que há de se cantar — todos — ao sentir a “nossa canção” que “consideramos justa toda forma de amor”.

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