Minha oração

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 03 de junho de 2023

Minha prece não é para santo, ainda que confie em São Jorge — Ogum. Não peço a Deus todos os dias, porque em algumas segundas, percebo Deus tão diferente ou mesmo ausente que questiono o por quê de tanta maldade no mundo. Talvez faça oração por minha própria procissão de fé, para minha corrida pelas horas, para minha inquietude diante do caos e do silêncio que faço para o mesmo caos. 

Na minha lida com a vida, eu quero tanto e mesmo o não querer. Sangrar sem dor deixou de ser a minha ilusão. Doer sem sangue é, no entanto, mais cruel. Ainda que consciente, nem sempre consigo que não me sofra. Por isso, refutar a dor, talvez seja satisfação apenas para os que vivem sobrevivendo. Eu dispenso o somente sobreviver. Ninguém deveria se contentar em só sobreviver, com morte em vida. 

Quero esse vício de viver, mesmo quando frágil, mesmo quando nocivo o ópio que me entorpece, ao invés, de me fazer voar sorrindo. Não desejo apressar o meu fim, ainda que nem sempre o que pretendo aconteça na velocidade que eu gostaria. Não preciso que me entendam e nem quero que finjam compreender, mas quero que respeitem o meu existir, tal qual me fiz e faço. 

Não permito que atem as minhas mãos, minhas pernas, meus pulmões. Livres sejam os meus sonhos, as minhas ideias, o meu modo e a minha vontade de ser importante, nem que seja só para mim mesmo. Sou o que mostro, muito mais do que o que escondo. Não sei mentir e nem quero aprender disfarces. Se me amarem ou me odiarem, apenas se aprofundem antes de decidirem. Mas saibam que sou o que descubro a cada dia, por isso prefiro não me definir assim tão permanentemente como uma coisa só. É o que peço na minha oração. Ser múltiplo, aberto, possível, solidário, profundo, apaixonado, repleto de quereres. 

Quero domingos no meu coração. Ver discos voadores nos olhos que aporto. Amar mais do que dizem que devo. Amar mais do que suponho estar disposto. Quero chorar de emoção e voltar a chorar, mesmo que seja choro de despedida, mas que tenha a verdade de quem se compartilhou em algo intenso. Talvez, eu deva desejar antes essa intensidade que no futuro dirá para o meu eu do ontem: “valeu à pena”. 

Quero saudades e seguir a construir saudades. Meu nome é nostalgia, tanto quanto vivacidade. Quero que declamem as minhas crônicas, cantem as minhas músicas. Quero a arte, quero ter a alma vestida de criatividade e despida — espalhar poesia pelo mundo.

Quero a louca imaginação de que vou hoje a um show do Cazuza, amanhã do Tim Maia e na próxima semana, em um bar qualquer de esquina, vou encontrar Belchior cantando. 

Quero gostar de São Paulo, louvar o Rio, matar saudades de Tiradentes, seguir fascinado por Friburgo. Quero conhecer Praga, mais do que Nova Iorque, mas se a escolha me for presenteada, quero mesmo é visitar o Cairo, Cuzco, Halong Bay…

Berlim, não só pelas suas excêntricas baladas, mas porque meu grande amigo, Bernardo, mora lá. Quero é, próximo ou distante no mapa, visitar o coração de alguém que me ame pelo que sou, mesmo sendo melhor depois da próxima estação.  

Quero abolir as metáforas para ser mais direto: “eu quero”. Você, a cidade, a alegria de chegar em casa, tanto quanto a ansiedade pela surpresa que me espera lá fora. Quero todas as metáforas para ser mistério, quando o mistério precisar me proteger dos burros incoerentes. 

Quero esse risco de ser feliz com a habilidade de trapacear os perigos, e, se preciso for conviver com os perigos como se fossem meus bons amigos. Talvez sejam. 

Quero pedir perdão a mim mesmo pela confusão que faço toda vez que não sigo meu coração, minha intuição, minhas razões de viver. Perdoado, quero meu coração como guia, minha intuição como mastro, minha vida vibrando pela razão de existir. Quero minha oração em mantra, minhas preces como prática. 

Quero a simplicidade de ir de pijama à padaria e de Havaianas ao shopping. Quero andar pelado pelo jardim da casa que ainda não tenho, acenar ao vizinho e pedir a ele um trago do que fuma. 

Dizem ser mais fácil dizer o que não se quer. O que se quer é o motivo que há entre cada intervalo de respiração. De repente, basta admitir: sou o que quero e até mais.

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