Liberdade às pipas

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 14 de janeiro de 2023

Certas tardes de domingo eu me ponho a observar as pipas. Cortam o imenso azul, flutuam no espaço até quase ficarem inatingíveis à visão. Algumas são quadradas, outras em losango. De uma cor só… azuis, vermelhas, brancas, amarelas. As multicoloridas chamam mais a atenção do que aquelas que carregam símbolos de times de futebol ou desenhos como sol ou pássaros. Pudera. As pipas sentirem inveja dos pássaros ao ponto de almejarem ser um. 

Talvez, o dono da mão que segura a linha que segue até a rabiola e sustenta a seda estruturada em varas sonhe em ser pipa. Homem pipa. Pipa voada. 

Ouvi a expressão “pipa voada” algumas vezes, especialmente dos mais velhos quando se referiam a pessoas sem controle. Aquelas que vão para onde o vento levar, assim como uma pipa. Acho que homem pipa seja mais profundo e bem menos arisco. 

Voar, voar e voar pelas suas próprias mãos ou pela linha de Deus ou pela reta de seus prazeres, pecaminosos ou não. A própria consciência e nenhuma outra coisa é que define os próprios pecados. Nas formas mutáveis de voar a vida, se pode escolher: afirmar, flutuar ou mergulhar em terra e viver se punindo. Há fiscais de rabo alheio que adoram punir: os outros. Hipócritas. 

Aliás, em um moralista quase sempre mora a hipocrisia. As pipas nos trazem lições. E não precisa ser condutor de pipas para compreender. Poetas que apenas observam, voam como pipas, provavelmente sabem até mais do que campeões de concursos de pipas. Sim! Há campeonatos em diversas modalidades para pipeiros. A mais bonita, a maior, a que voa mais alto, a que sobe mais rápido. E se podem inventar mil modalidades. No campeonato da vida, se é que a vida é uma disputa, as possibilidades são aos bilhões. 

As pipas gigantes se exibem, mas não voam tão alto. As pouco firmes não plainam tão bem. Se desequilibradas, não empinam tão rápido, mas com habilidade podem voar. Há linhas que, deslealmente, cortam pipas que querem apenas voar. Mas há os que competem e tem prazer em eliminar as outras. 

Crianças e até adultos correm para apanhar as pipas em queda sem direção certa. O vento é quem decide onde irá cair. Quem as pegará? Por molequice? Por egoísmo? Por espírito aventureiro ou apenas por costume acumulativo? A quem não tem nada, uma pipa — mesmo rasgada pelos galhos das árvores — pode ser tudo. Como pode ser o bastante apenas correr, correr e correr atrás de uma pipa que não se sabe bem onde cairá e se vai cair. Correr, mesmo sem direção é o que muitos terão de mais próximo de liberdade. 

Liberdade às pipas. Que voem sem condução de linhas que decidem se empinam mais, se voam mais alto, se recuam para as lajes de suas não moradas. Livres, as pipas são mais belas como os pássaros que escapam das gaiolas ou como os homens que se libertam dos outros que querem decidir o que os fazem felizes. Assim como é singular a leveza das pipas, única é a liberdade que faz cada um ser quem se é, como se é, para o que der e vier. 

Minha fé é minha e o que me faz feliz só eu posso definir, mesmo quando recuso abarcar nos oceanos das definições. A minha linha da vida é cheia de barrigas como das pipas que ganham carreira demais e tombam ao vento ou se recuperam pelo mesmo vento para seguirem no desejo do céu. 

Mas o meu céu nem sempre é entre nuvens ou para além da estratosfera. Por vezes, está dentro de mim mesmo, tantas outras escapam em pipas que voam pelas calçadas, vagueiam em filmes, em músicas, passeiam no silêncio dos raios de sol. 

Sou devoto dos encontros e aprendo com aqueles que se utilizam de cerol para tentar me cortar. Mas o voo é meu e minha linha segue, porque cada começo é continuação.

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