Brasileiro

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 04 de setembro de 2021

De repente, me vi nu em frente ao espelho. Mais nu que os que habitavam essa terra há mais de quinhentos anos. Os primeiros desse lugar a serem assaltados. Tiveram roubado o seu chão de florestas. Meus ancestrais são os culpados. Eu sou, em parte, culpado por permitir que qualquer outro irmão meu acredite em marco legal. Ora, os brasileiros indígenas estão aqui bem antes de 1500. Ninguém é mais dono do Brasil do que os originais.

Nu, em frente ao espelho, me deparo com a minha imagem refletida. Sem alegorias. Sem fantasias. Sem truques de ilusão. Eu que já acreditei ser verde e amarelo acolhedor. Pratico xenofobia até com meus irmãos de nação. Do Nordeste. De São Gonçalo. De Roraima. Mas o espelho não esconde minha latinidade. Em tempos sombrios de negacionismo, o que o espelho reflete não me permite negar, ainda que eu possa fechar os olhos ou criar narrativas diversas. Sóbrio, reflito: quem sou eu ou quem me tornei?

Sem vestimentas que me devolvam ao armário, não fico bem na foto de arminha na mão. Envergonhado, com certo pudor, dou moedas de cinquenta centavos ao menino que vende balas no sinal, mais uns trocados à mulher que vende pano de chão no sinal adiante... O pouco que sobrou do pouco que me restou, entrego aos dois jovens que fazem acrobacia próximo à vaga de estacionamento. Não sobrou nada para a mãe com dois filhos que me pede uma quentinha na porta do self-service. Não sobrou nada para mim, além do cartão de crédito de fatura vencida e com apenas o mínimo paga. 

Nu e na união de nus, uma pátria desnuda, dividida como as duas bandas de uma bunda, separadas por um rego assustado de quem não gosta do que vê e ainda não entendeu que teme o que sente. 

Eu, brasileiro, sem a alegria do carnaval. Eu, brasileiro, matando a fome de quem posso, mas morto pela fome de todos os que sentem fome que não posso matar. Eu, brasileiro, salvando minha própria pele, mas desleixado em salvar a pele preta de quem tem a marca de escravo. Eu, brasileiro, machista que espanca travesti e inferioriza mulher, todos brasileiros e humanos, como eu. Eu, brasileiro, solidário com uns indivíduos que me podem olhar nos olhos, mas culpado por alimentar de boas maldades todos os outros. 

Eu, brasileiro, de fé enganada e pela fé movido a dar de ombros aos que amam da forma como não entendo amar. Eu, brasileiro, já não finjo felicidade com os gols da seleção brasileira, pois essa seleção não é mais minha. Eu, brasileiro, jocoso com a vida da Amazônia e do Pantanal. Eu, brasileiro, cruelmente desmato e me mato, pouco a pouco. Eu, brasileiro, filho das desigualdades aponto para heróis de araque que me mandam à guerra para morrer. 

Eu, brasileiro... Triste. Feliz. Já não sei nem mesmo sobre cada uma dessas cicatrizes de séculos de opressão. Sei que elas aguçam o desejo de oprimir. Nu, entro para o espelho para impedir a imagem que ele reflete. Quem sabe preso lá dentro, me torno liberto?  

 

Foto da galeria
(Imagem: Freepik)
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