A literatura salva. Liberta

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Há sete semanas, escrevi a coluna “As Estranhezas dos Novos Tempos” em que abordei o fato de uma prima ter falecido, e, sua filha, levado as cinzas da mãe para casa, tendo a finalidade de esperar o momento propício para lançá-las em algum lugar ao lado de pessoas da família, que moram em outros estados. Em tempos de pandemia este momento pode demorar meses.

O ato de trazer as cinzas para casa me tocou, e confesso que fiquei carregada de dúvidas e apreensões. Ao escrever a coluna, fiz várias reflexões a respeito do findar e fui concluindo que conservar os retos mortais de alguém com quem convivíamos e amávamos em algum local onde habitamos, como na gaveta do armário, é uma decisão complexa e dolorosa. É uma forma de negar a perda, transformando o morto em eterno vivo.

Tive a oportunidade de compreender que aceitar a morte com serenidade nos torna mais aptos a lidar com esta única certeza da vida, e, portanto, a partida de um ente querido deve ser vivenciada em sua concretude real; a pessoa falecida deixa de existir. Porém é saudável que permaneça presente nas lembranças e sentimentos dos familiares, amigos e outros que a conheciam.

Alguns dias depois, conversei com uma amiga a respeito, e ela me disse que gostaria de ler o que eu havia escrito porque seu marido guardava há anos as cinzas do seu querido cachorro na gaveta da escrivaninha. Enviei-lhe a coluna. Em pouco tempo, ela me ligou, dizendo que o tinha convencido de jogar as cinzas do Simba no canteiro de uma praça perto de onde moramos, uma vez que o cão adorava passear lá.

No dia marcado, eles fizeram uma cerimônia simples e carregada de emoções. Eles espalharam as cinzas com ternura e ficaram em silêncio. 

Minha amiga exclamou quando as cinzas se dispersaram no ar e caíram sobre as raízes de uma árvore:

- Ele se libertou da caixa. Nós nos libertamos também.

O marido dela, também meu amigo, suspirou.

- Estou aliviado. 

Eles voltaram para casa sem falar, e eu não parava de pensar no poder da literatura.

 

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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