É tempo de mudar a roupa

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

terça-feira, 24 de março de 2020

A letra da música O Dia Em Que a Terra Parou, mesmo sendo veiculada pelos quatro cantos da internet, nos oferece motivos para refletir. Escrita em 1977, há 33 anos, Raul Seixas, por quem tenho admiração, principalmente pela inteligência e sagacidade, descreveu o momento em que vivemos, sem atribuir a um vírus, o COVID-19, a causa de fazer o mundo parar. Da criatividade à premonição, da vidência à profecia, não há como determinar porque nosso músico-poeta criou essa obra.

Entretanto, a ideia de versatilidade me toma a atenção. Neste momento, em que todos precisam respeitar o isolamento social, ficando em suas casas, a pluralidade de interesses e de capacidades se tornam características relevantes à personalidade das pessoas.

Foi decidido que todos devem se aquietar em seu canto por um tempo, provavelmente longo. Fala-se em seis meses. Ou quatro. Que sejam três; de noventa a cento e oitenta dias. De 2.210 horas a 4.420 horas, mais precisamente. Ah, como será preciso buscar o bem-estar nesse tempo e encontrar formas de torná-lo útil. Não há receitas para sugerir o que as pessoas devem fazer; cada um tem de buscar outros modos de fazer o dia.  

Resolvi pesquisar em Freud algumas ideias, especificamente na obra O Mal-Estar na Civilização. A primeira que achei, em apenas o virar de uma página, foi a de que é saudável expandir a capacidade de observar o mundo que nos cerca; olhar para as estrelas, reparar no verde da natureza, até no formato das unhas das mãos. Tudo pode nos sugerir pontos de partida para o restabelecimento de uma rotina diferente.

Estamos acostumados com a ordem o que nos impele à repetição de hábitos; como, onde e quando as coisas devem ser feitas, evitando ao máximo as oscilações e hesitações. Estou acostumada a fazer o café numa cafeteira de ágata azul. Se não for exatamente nesta minha cafeteira, vou estranhar, a ponto de prejudicar o prazer que tenho em fazê-lo e saboreá-lo. 

A organização de vida em determinados padrões é benéfica, confortável e segura, além de poupar energias físicas e psíquicas. Quem gosta de lidar com dificuldades? A sociedade nos exige e nos educa para que não sejamos negligentes e que respeitemos modelos que prezam pela limpeza, pela beleza e pela organização. Imagine um saguão de um edifício comercial com quatro portas de elevador que transportam cem pessoas ou mais, num espaço de dez minutos. Se não houver filas organizadas, haverá o caos, empurra-empurra, brigas e outras situações estressantes.

Quem vai afirmar que as filas não são importantes? 

Entretanto, agora, com este vírus que pegou o mundo desprevenido, precisamos buscar outras formas de viver em nossos cantos. De fazer novas filas. Vamos reconfigurar este nosso lugar delimitado para passarmos um tempo. Além do que, teremos a oportunidade para descobrirmos um pouco melhor quem somos e como queremos viver os dias que temos pela frente.

Sei que será preciso ter abertura de pensamento e curiosidade aguçada para construirmos diferentes modos de colocar nossa vida em prática. Agora não é época para teorias e divagações. É, sim, um tempo de mudar a roupa. 

Deixo, para terminar, a letra da música do nosso Raul, O Dia em que a Terra Parou. Como todas suas obras, cada verso contém uma riqueza de ideias extravagantes. Mas a vida é assim.

 

Essa noite eu tive um sonho

De sonhador

Maluco que sou, eu sonhei

Com o dia em que a Terra parou

Com o dia em que a Terra parou

 

Foi assim

No dia em que todas as pessoas

Do planeta inteiro

Resolveram que ninguém ia sair de casa

Como se fosse combinado em todo

O planeta

Naquele dia, ninguém saiu de casa, ninguém

 

O empregado não saiu pro seu trabalho

Pois sabia que o patrão também não tava lá

Dona de casa não saiu pra comprar pão

Pois sabia que o padeiro também não tava lá

E o guarda não saiu pra prender

Pois sabia que o ladrão, também não tava lá

E o ladrão não saiu pra roubar

Pois sabia que não ia ter onde gastar

No dia em que a Terra parou (êê)

No dia em que a Terra parou (ôô)

No dia em que a Terra parou (ôô)

No dia em que a Terra parou

 

E nas igrejas nenhum sino a badalar

Pois sabia que os fiéis também não tavam lá

E os fiéis não saíram pra rezar

Pois sabiam que o padre também não tava lá

E o aluno não saiu pra estudar

Pois sabia que o professor também não tava lá

E o professor não saiu pra lecionar

Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar

 

No dia em que a Terra parou (ôôô)

No dia em que a Terra parou (ôôô)

No dia em que a Terra parou (uuu)

No dia em que a Terra parou

 

O comandante não saiu para o quartel

Pois sabia que o soldado também não tava lá

E o soldado não saiu pra ir pra guerra

Pois sabia que o inimigo também não tava lá

E o paciente não saiu pra se tratar

Pois sabia que o doutor também não tava lá

E o doutor não saiu pra medicar

Pois sabia que não tinha mais doença pra curar

 

No dia em que a Terra parou (oh, heah)

No dia em que a Terra parou (ôôô)

No dia em que a Terra parou (eu acordei)

No dia em que a Terra parou (acordei)

No dia em que a Terra parou (justamente)

No dia em que a Terra parou (eu não sonhei acordado)

No dia em que a Terra parou (êêê)

No dia em que a Terra parou

No dia em que a Terra parou

 

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Tereza Cristina Malcher Campitelli

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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