Ainda sobre a hidroxicloroquina

Max Wolosker

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Economia, saúde, política, turismo, cultura, futebol. Essa é a miscelânea da coluna semanal de Max Wolosker, médico e jornalista, sobre tudo e sobre todos, doa a quem doer.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Em função de críticas recebidas, ao médico e jornalista que sou, sobre o artigo que publiquei aqui na quarta-feira passada, 20, intitulado “A polêmica sobre usar ou não a cloroquina”, transcrevo abaixo o artigo escrito pelo médico Alfredo Guarischi (membro da Câmara Técnica de Oncologia do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro – Cremerj; colaborador do Proqualis-ICICT-Fiocruz-MS; organizador do Congresso Safety e do Gerhus), conceituadíssimo na cidade do Rio de Janeiro. Publicado em (https://cbc.org.br/o-que-nao-foi-publicado-na-the-lancet/) veio em boa hora por causa da referência feita à revista The Lancet, esta semana no jornal da Rede Record.

O que não foi publicado na The Lancet

A cloroquina (CQ) foi sintetizada em 1934, e a hidroxicloroquina (HCQ), em 1950, medicamentos empregados por décadas para tratar malária, lúpus e artrite reumatoide. Seu uso em outras patologias ainda desperta debates acadêmicos nem sempre saudáveis.

Em 22 de maio, Mehra e colaboradores publicaram na revista The Lancet um estudo com mais de 98 mil pacientes com Covid-19 hospitalizados. O desfecho clinico de 96.032 pacientes foi analisado.

Sua conclusão principal foi que os 14 mil pacientes tratados com HCQ ou CQ, quando usadas isoladamente ou associadas a um antibiótico macrolídeo (Azitromicina), redundou na diminuição da sobrevida hospitalar, aumento de arritmias cardíacas, tempo de internação no CTI e uso de ventilador mecânico. O grupo controle, não randomizado, foi de 81mil pacientes que não receberam o tratamento experimental.

Ora bolas, diante de uma conclusão tão enfática, por que comentar o artigo que foi manchete até da grande imprensa, que chegou a publicar que é hora de deixar essas drogas descansarem? Respondo: porque faltaram importantes informações no artigo.

Um grupo de 852 pacientes, por terem feito uso da medicação experimental por mais de 48 horas antes da admissão hospitalar, não teve o desfecho de seu quadro analisado. Esse grupo representou 38% do total dos pacientes excluídos. Se estivessem na análise, aumentaria em 17% o número total de pacientes tratados experimentalmente. Será que o uso por um tempo maior antes da internação teria impacto no desfecho clínico? Por que não publicaram, até em separado, o resultado desse grupo?

No dia seguinte da publicação on-line, escrevi um e-mail para o autor principal, dr. Mehra, solicitando sua ajuda para entender melhor o artigo. Em menos de duas horas, recebi sua resposta: “Ótimas perguntas, mas difíceis de responder, pois esse banco de dados é principalmente relacionado a hospitalização. Desejo-lhe tudo de bom”. Essa observação mostra seu respeito às dúvidas científicas e como está no artigo publicado, os autores reconhecem a necessidade de “confirmação urgente dos ensaios clínicos randomizados”.

Está correto. Sua publicação tem falhas metodológicas, apesar do uso de diversas ferramentas estatísticas para mitigar os problemas relacionados a estudos retrospectivos. Não sabemos a real diferença e qualidade do tratamento médico empregado nos 617 hospitais escolhidos, em seis diferentes continentes, assim como a uniformidade da coleta dos dados. Dados clínicos obtidos de prontuários eletrônicos e com codificações distintas sofrem distorções, mesmo com a utilização de sofisticados filtros estatísticos.

Outro ponto preocupante é que a dose das drogas experimentais (para essa nova doença) utilizada não foi uniforme, e, em média, foi 50% maior do que a utilizada no tratamento das doenças para as quais já estão cientificamente aprovadas.

The Lancet, fundada em 1823, faz parte do seleto grupo de revistas médicas nas quais somente artigos revistos e aprovados por um corpo editorial de especialistas são publicados. Apesar disso tudo erram.

A revista inglesa, referência mundial, demorou 12 anos para reconhecer como fraudulento o estudo publicado que ligava a vacinação contra sarampo, caxumba e rubéola (MMR) com o aparecimento do autismo. Somente em fevereiro de 2010 afirmou que “agora está claro que vários elementos do artigo publicado em 1998 eram incorretos”. Mas o desastre contra a ciência já estava feito. O movimento mundial antivacina cresceu, resultando no ressurgimento de doenças.

Há muitas questões em relação ao tratamento na fase inicial dessa nova e ainda desconhecida doença, que só serão respondidas com estudos científicos. Não sabemos qual o real impacto de medicamentos administrados em sua fase inicial, como o do uso de antivirais caríssimos, que já permitiram lucros enormes aos detentores de suas patentes nas bolsas de valores, ou de fármacos antigos e baratos (HCQ e alguns vermífugos).

Apesar da qualidade profissional dos seus autores e da The Lancet, esse artigo é mais um que deva ser interpretado com ressalvas. Pode estar correto, mas os dados publicados não corroboram a conclusão.

Seria interessante saber como os dados de todos os 96.032 pacientes, hospitalizados no período de 20 de dezembro de 2019 até 14 de abril de 2020, puderam ser revistos e aprovados pelo corpo editorial de especialistas externos e serem publicados em 22 de maio de 2020.

A ciência precisa de metodologia para não falhar; os pesquisadores e as revistas médicas não deveriam ter pressa. Com isso o lucro social seria maior.

 

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