Ressaca amorosa

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Levou um ano ensaiando a decisão, mas finalmente dera o Grito do Ipiranga: Separação ou Morte!

Assim que entrou no bar, os amigos começaram a cantar “Até que enfim, até que enfim...” Um deles, mais poético, logo acrescentou uma rima embargada de cerveja: “Aquela baranga largou de mim...”  Tinha sido frequentador diário, mas nos últimos anos raramente aparecia, e quando aparecia tomava um único chope, numa única golada. Não desatava a gravata nem a cara de quem tivesse acabado de espancar uma velhinha indefesa ou estivesse indo tirar o pai da forca. Mas agora retornava e retornava triunfante. Os velhos companheiros já tinham recebido a notícia e, de copos erguidos, o esperavam para comemorar.

Lembravam dos bons tempos, quando ele era o primeiro a chegar ─ às seis e quinze, o tempo necessário para sair do escritório e atravessar a rua. Repetia a saideira oito, nove, dez vezes. E não era só no bar. Nos bailes, nas festas, no futebol de salão, lá estava ele, amigo entre amigos, sempre animado, sempre de bom humor. E sempre tranquilão. Se havia um desentendimento, era o primeiro a chegar com o famoso “deixa disso, vamos na paz, irmão!”

Aí aconteceu Lucinda. Nem o fato de Lucinda ser dentista, ter-lhe arrancado alguns dentes e cobrado uma fortuna para botar outros no lugar impediu que ele se apaixonasse por ela. Enfim, casou. Casou e desapareceu. Se encontrava alguém da antiga turma, cumprimentava-o solenemente como se estivesse beijando a mão do Papa. Se alguém conseguia arrastá-lo até o bar, era aquela pressa, aquela sobriedade. E a todos ele dizia que finalmente estava feliz, que era outro homem, que Lucinda era tudo e muito mais, que nunca mais voltaria à vida antiga.

Porém... Porém... Começaram a correr boatos de que nem tudo eram flores. Que Lucinda o trazia no maior cabresto, que era a rotina casa-trabalho, trabalho-casa, visita à sogra aos sábados, aniversário de sobrinho todo mês, uma latinha de cerveja no almoço de domingo. Enfim, casou e cansou. Levou um ano ensaiando a decisão, mas finalmente dera o Grito do Ipiranga: Separação ou Morte!

Agora, homem livre, reaparecia no bar de antigamente. Um Nelson Goncalves desafinado entoou: “Boemia, aqui me tens de regresso...”, e mais não cantou porque o alarido foi geral. Saudavam o amigo como quem saúda um soldado que volta da guerra, mutilado, mas vivo. Quando o deixaram falar, ele exaltou o valor da liberdade, a alegria do convívio com os amigos, o triunfo da vontade sobre as amarras do matrimônio. Já passava das três da manhã e do enésimo copo quando finalmente admitiu que a separação fora decisão de Lucinda, que ele até tinha pedido para dar mais um tempo, que chegara à humilhação de mandar para ela um buquê de rosas vermelhas. Mas, tudo bem, finalmente estava livre. Livre!

Já de manhãzinha pegou um taxi e foi para a casa dos pais, com quem voltara a morar. Entrou apoiando-se nos móveis, trancou a porta e jogou-se na cama. Só a mãe, já preparando o chá de boldo, ouviu o filho suspirar, a voz saindo espremida pela porta do quarto: “Lucinda, meu amor!”

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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