O banheiro do Papa

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 09 de março de 2022

Talvez nos faltem governantes com o espírito empreendedor daquele cidadão uruguaio

É difícil abordar certos assuntos sem perder a elegância. Por exemplo: fiquei sabendo que a ONU estabeleceu dezenove de novembro como o Dia Mundial do Banheiro. A princípio achei engraçado, porque, embora existam as celebrações mais esquisitas que possam ser imaginadas, celebrar o vaso sanitário me pareceu um exagero além da conta. No entanto, mais do que engraçada, a data é triste.  No Brasil, a efeméride se destina a lembrar às autoridades em particular e ao povo em geral que mais de 35 milhões de brasileiros não têm onde se aliviar senão indo atrás do poste ou no meio do mato. Ou então o sujeito faz o que tem que fazer num penico e joga fora, caia onde cair, azar de quem estiver passando por perto na hora em que alguma coisa estranha sair voando pela janela.

Já no Brasil colônia os escravos tinham entre outras tarefas igualmente honrosas a de recolher de manhã o trono que seus senhores haviam enchido no dia anterior, colocá-los no ombro e ir até a praia ou rio mais próximo e despejar ali o precioso conteúdo que, equilibrando mal e mal, entornando aqui e respingando ali, iam levando pelas ruas afora. Aliás, na falta de praia ou rio, qualquer recanto ou esquina da cidade servia para receber esse presente matinal. A poluição era completa. A visual ainda podia ser evitada, sempre era possível virar o rosto para o outro lado. O problema maior era a olfativa, porque ninguém aguenta ficar por muito tempo sem respirar, e aos pulmões humanos mais convém um ar empesteado do que a falta de ar. Sem falar que mal cheiro não pede licença para existir, entra por uma janela e sai pela outra, não sem antes percorrer todos os cômodos da casa.

Não sei se assistiram ao filme o Banheiro do Papa. Pedindo licença pelo spoiler, vou contar. Numa cidadezinha do lado de lá da fronteira Brasil - Uruguai corre a notícia de que João Paulo II em pessoa vai passar por ali. A expectativa é de que milhares de pessoas, de ambos os países, se acotovelem para ver o Sumo Pontífice. Como a população local é bem pobre, todos começam a pensar num jeito de aproveitar a oportunidade para ganhar algum dinheiro. Ou seja, assim como aconteceu com o Natal e tudo mais, o que era espiritual virou comercial. Nos dias que antecederam ao grande evento, cada habitante investiu o que podia ou não podia em alguma coisa de que os turistas viessem a precisar ou quisessem levar como lembrança. A maioria recorreu aos seus supostos dotes culinários e, em consequência, ao longo das ruas por onde desfilaria a comitiva papal havia comida suficiente para matar a fome de todos os fiéis desde o ano zero da Era Cristã.

Um deles, no entanto, se fez uma pergunta mais oportuna: onde esse povo vai se aliviar depois de comer tudo isso? Assim pensando, investiu o dinheiro que não tinha na construção de um banheiro. Mas pobre dá tanto azar na vida que nem o Papa consegue amenizar e a passagem de João Paulo foi tão rápida que ninguém teve tempo sequer para um adeusinho. O máximo que a população viu foi a poeira dos carros que passavam em alta velocidade. O triste fim da história é que ninguém chegou a sentir fome e todo mundo foi embora sem comer e sem precisar, como diz o eufemismo, ir ao banheiro. De modo que o engenhoso construtor ficou ainda mais pobre, mais endividado e provavelmente menos católico.

Talvez nos faltem governantes com o espírito empreendedor daquele cidadão uruguaio. Administradores capazes de fazer com que cada brasileiro usufrua desse direito tão básico e tão esquecido: um banheiro onde possa se trancar, se sentar e ficar pensando na vida. Mas não façamos mal juízo dos nossos homens públicos e das, com licença da má palavra, mulheres públicas. Talvez todos eles pensem — com razão — que brasileiro pobre come tão pouco que não tem como nem por que correr ou recorrer ao vaso sanitário.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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