Médicos, receitas e remédios

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 02 de novembro de 2021

Apenas entrego a receita ao balconista que, de pronto, chama a farmacêutica, que, de pronto, convoca o mais antigo funcionário da casa

Não sou eu que vou falar mal dos médicos. Primeiro, porque os tenho em alta conta, especialmente os que tratam da minha pouca saúde. Não digo pouca porque ela me falte, mas porque saúde, como felicidade, nunca é demais. Alguns dirão que dinheiro também entra nessa conta, e mesmo o ingênuo Sancho Pança, fiel escudeiro do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, chegou a dizer que “Com bom cimento se pode fazer um bom edifício, e o melhor cimento do mundo é o dinheiro”. Pode ser, porém creio que mais vale possuir um centavo de saúde e outro de felicidade do que, sem elas, ser Bill Gates, Jeff Bezos e Elon Musk juntos, pra falar só dos que estão no topo da lista dos maiores ricaços do mundo. Por outro lado, o próprio Sancho vai dizer, mais adiante, que “Aos médicos sábios, prudentes, discretos, esses meto-os no coração e honro-os como pessoas divinas”.

Também não falo mal dos médicos porque é uma gente da qual se pode precisar a qualquer momento, em qualquer esquina da vida. Você vai andando lépido e fagueiro e de repente tem um piripaque e o mundo desaparece da sua frente. O que você mais quer ver nesse momento da vida (ou da morte) do que um bom e atencioso médico? Então é muito sensato estarmos sempre de bem com eles, para que, se nos reconhecerem antes do atendimento, eles não tenham que repetir mil vezes o juramento de Hipócrates. “Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Hígia e Panaceas...” e por aí vai, sem esquecer aquele pedacinho que diz: “A ninguém darei por comprazer remédio mortal nem um conselho que o induza a perda”. Se não for bem assim, espero que, tendo em vista que a citação é bem intencionada, ainda que imperfeita, nenhuma sociedade médica me processe,

Estando fartamente provado que não estou aqui para falar mal dos médicos, digo que gostaria de entender por que, em pleno século XXI, tantos deles continuam a escrever com letra analfabética, horrorosa, ilegível e pior de tudo, perigosamente mortal. Tenho pensado nisso desde que uma senhora, supondo que por eu ser professor de português hei de entender de hieróglifos e coisas semelhantes, mandou me pedir para decifrar o que estava rabiscado numa receita que o médico lhe entregou. Olho a folha assustado, viro-a de cabeça para baixo, tento a leitura vertical e a transversal e o mistério não se revela para mim.

Reúno alguns amigos, e todos se confessam incompetentes diante de tamanho desafio. Claro, todos têm um palpite. “Acho que é Toral”, diz um. Mas outro observa que, “na minha opinião”, não tem nem T nem R nessa palavra. “Deve ser damil”, opina o terceiro, “Só se for Dramin”, que esse existe, garante um mais entendido no assunto. E por aí vai: “Latam” (“Mas isso é nome de companhia aérea”), “Neurol” (“Acho que a pessoa não tem problema nervoso, não”), Brodemediol (“Mas na receita só tem cinco letras!”). Até que um engraçadinho aconselha: “Vai na farmácia e pergunta se tem Babacol. Se tiver, é esse mesmo”.

Bem, lá vou eu na farmácia e não pergunto por Babacol, apenas entrego a receita ao balconista que, de pronto, chama a farmacêutica, que, de pronto, convoca o mais antigo funcionário da casa. Debruçados sobre o balcão, também eles aproximam e afastam a receita dos olhos, viram e reviram a folha em diversas posições. Somente sobre uma coisa todos têm certeza: os riscos que antecedem à palavra (se é que aquilo é uma palavra) não é mais do que uns rabiscos desses que a gente faz quando a esferográfica custa a escrever. Sem chegar a nenhuma conclusão e com receio de matar a cliente com o remédio errado, recomendam que se procure o médico, peça para ele ditar o nome da droga e anotar o que ele disser (não deixe que ele escreva!). Feito isso, finalmente se chegou ao nome do medicamento, algo assim como Niuron.

Ah, os riscos acima citado significavam “duas caixas”.

Publicidade
TAGS:

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.