Em busca da beleza perdida

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 02 de maio de 2023

Nas crianças, aí mesmo é que a beleza chega a ser um exagero de Deus

Um outrora famoso humorista brasileiro, já nas últimas curvas da estrada que leva aos noventa anos (e depois leva sabe-se lá para onde) submeteu-se àquela reforma eufemisticamente conhecida como harmonização facial. Não sei bem que cara ele tinha antes, mas pelas fotos que vi, não acredito que a reforma tenha harmonizado grandes coisas. Pode ser que agora ele esteja de fato um pouco mais bonito, até porque pior do que estava era difícil ficar.

Na minha humilíssima opinião, ele chegou a uma idade em que melhor faria se começasse a harmonizar a alma para aquela longa viagem sem volta do que insistir em impressionar os outros com seus últimos encantos. Não que eu seja contra a beleza. Muito pelo contrário. Nas mulheres, a beleza é o colírio do mundo e mesmo nos homens ela não faz nenhum mal às vistas. Quando pousa na natureza ou nas crianças, aí mesmo é que a beleza chega a ser um exagero de Deus. As feias não me levem a mal, mas não há como não concordar com Vinícius de Moraes: “A beleza é fundamental”. Apesar de que, segundo afirma um etílico ditado, “Não existe mulher feia, você é que bebeu pouco”, ou, ainda segundo outro anexim (que palavra antiga!), “Quem ama o feio bonito lhe parece”.

Mas o que surpreende no caso desse senhor (se é que alguma coisa ainda nos pode surpreender neste mundo de espantos em que ora vivemos) é essa obsessão por uma cara bonita, numa idade em que ela pouco ou nada pode acrescentar à felicidade da pessoa, e nada mais a justifica, salvo o caso de o sujeito ser tão horroroso que assuste as criancinhas. Como o caso daquele homem que, acusado de ser feio além da conta, prometeu matar-se caso lhe mostrassem alguém que, por se assemelhar a ele, o convencesse da própria feiura.

Muitos monstrengos foram trazidos à sua presença, mas nenhum deles lhe causou grande impressão. Assim foi por vários anos, até o dia em que apareceu um forasteiro que era a perfeita mistura do Corcunda de Notre Dame com Frankenstein. Ao deparar-se enfim com alguém que o enfrentava no quesito horrorosidade, deu-se por vencido: “Se eu sou tão feio quanto ele, mereço morrer”, e cumpriu a promessa. Bastou esse simples gesto de humildade para que o mundo imediatamente ficasse um pouco mais bonito.

Grande é a vaidade humana. Está lá no Eclesiastes: “Vaidade de vaidades. É tudo vaidade”. Cada um de nós tem a sua, e a mais grave talvez seja justamente alguém achar-se uma pessoa sem vaidade.  É bom e louvável que procuremos ser em tudo um pouco melhor a cada dia, mas também é bom nos aceitarmos como somos, porque Sancho Pança, que era ingênuo, mas não era idiota, já dizia ao seu mestre Dom Quixote que “Cada qual é como Deus o fez, e muitas vezes ainda pior”.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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